M. Nogueira Borges
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« em: Junho 18, 2010, 18:27:01 » |
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CARTA DE LONGE
É uma tarde de domingo, fria e enovoada, depois de uma manhã de cântaros. Há, incrivelmente, uma réstea de sol, vinda dos lados do mar,que se refracta no céu num arco-Ãris de esperança. Uma humidade viscosa escorre pelos prédios, e as poucas pessoas que estão na paragem do autocarro têm os rostos fechados como insinuando privações sem termo. Há uns tempos que ando para te escrever. Une-nos a memória feita de abandonos, conquistas, noites a contar estrelas com o cio das hienas a arrepiar-nos, um tempo em que combinávamos a fuga da violência, mas desistÃamos porque nunca serÃamos desertores. Cada vez tenho mais a certeza de que a amizade criada no sacrifÃcio e longe do vÃnculo do sangue ultrapassa todas as paixões que se esgotam num desejo satisfeito ou num egoÃsmo continuado. Interroguei-me, muitas vezes, se seria justo um homem livre escrever a outro agora privado dessa liberdade dos gestos que definem os dias, refém dessa opressão interior que tudo condiciona, até a contemplação do sol, o fluir do sangue e o bater do coração. A minha consciência supera os riscos descompassados, sem controle do artifÃcio, já que a grandeza humana não está no que se faz, mas no modo como se realiza. Incito-te a que não desesperes na solidão dos dias e das noites e da mediocridade que gira à tua volta para encontrares no imaginário do sonho os diálogos que sublimem a ausência de quem te poderia entender. Eu sei que és um sonhador porque naquelas noites do planalto de arame farpado, em que tu choravas, olhando o vale repleto de mato e de ciladas, dizias-me: - É tão bom chorar quando se ama o ventre que nos gerou e nenhuma escuridão nos cega o olhar do futuro. Pois amigo, esse futuro ainda não se acabou, está no passo seguinte, no livro em cima da tua mesinha de cabeceira, no sangue das tuas veias e na imensidão da tua alma. Chove. É verdade, a chuva voltou, mansa como um nevoeiro de leite. E a chuva, assim a deslizar nas vidraças, faz-nos pensar que o mundo chora. Anoiteceu. As formigas humanas recolheram à s “ ilhas “ de cimento, andaram nas filas dos automóveis, nas multidões das “ minas de suor†e do cheiro a carne de minhoca a verem as roupas para o Carnaval. Está na hora das televisões mostrarem as desgraças, dos bobos que ganham fortunas a comentarem o impossÃvel. Queria, então, adormecer com o rumor do silêncio. Abraço-te enquanto a chuva continua a cair, repetitiva e molengona. É com o sangue e os amigos que realizamos a nossa ligação à vida, a rede que nos sustenta nas relações com os outros.
;M. Nogueira Borges
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