Públio Athayde
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« em: Agosto 24, 2010, 10:18:17 » |
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Há alguns anos eu me dedicava intensamente ao jogo de xadrez. Horas a fio de estudos, treinos, partidas jogadas nas mais diferentes situações. Tal afixionamento provocava-me algumas vezes, principalmente quando me excedia muito em “partidas às cegas”, uma curiosa experiência: sonhava que estava jogando, mas a frustração por não ter adversário que respondesse a meus lances fazia-me acordar depois de muita espera angustiada pela decisão do adversário inexistente. Minha mente não podia aceitar aquela situação diferente da anterior, quando depois de cada problema solucionado (e feito o lance por mim), surgia novo problema (resultado da jogada do adversário). Meu subconsciente não assimilava a ruptura da relação dialética amigo-inimigo. Eu não podia aceitar a situação que se colocava: analisada – em sonho – determinada posição eu executava o lance hipotético. Seguia-se interminável espera pela resposta que jamais viria, a fadiga mental se acirrava sem nenhum proveito ou desenlace. Faltava um indivíduo na operação. Faltava outra entidade capacitada a tomar decisão, efetuar escolha. Não faltavam os outros elementos componentes do comportamento esperado em vão (o lance adversário): as normas estavam assimiladas, as teorias correntes de tática e de estratégia eram conhecidas, os fatores psicológicos, comportamentais, as condicionantes sociais e biológicas do adversário em sonho estavam postas. Nem todas essas condições, pretensamente determinantes de sua capacidade decisória, reunidos, tinham o condão de me propiciar efetuar um lance qualquer pelo adversário. Faltava a intencionalidade oposta que daria racionalidade ao jogo. Todas as teorias sobre as prováveis ações do adversário não me tornavam apto a fazer por ele aquilo que lhe é mais característico: decidir; de forma racional e lógica. A situação do sonho não é diferente da real, acordado também, nem eu nem qualquer outro enxadrista jamais tomou qualquer decisão por seu adversário. Supõe-se, prevê-se, instiga-se, mas não se impõe o arbítrio. O que mais me intriga, ainda hoje, é a percepção parcial, pelo subconsciente, da impossibilidade de se efetuar por outrem qualquer opção. Nem o mais libertino devaneio de sonho jamais me permitiu executar o lance pelo adversário. Vejo agora que mesmo a ação de se efetuar o lance sendo composta por uma série de determinantes históricos (a psicologia do enxadrista, sua ideologia, sua formação teórica e técnica, sua experiência pregressa na atividade específica), não serão esses fatores que determinarão em última instância o lance – ou qualquer ação decisória de caráter individual – a ser efetuado em uma situação qualquer. Ainda que a escolha do lance seja racional, e mesmo por isso, e componente de um planejamento estratégico predeterminado. Por que, se numa situação artificialmente simples, como é o xadrez em relação a toda vida de cada indivíduo, e suficientemente complexa ao mesmo tempo, para ser integrada por diversos componentes históricos, tais como os que mencionei, a escolha final em cada situação de decisão está apartada dos referidos componentes históricos e determinada pela racionalidade da escolha, seria diferente em qualquer outra situação da realidade? O emprego do jogo de xadrez como artifício para análise dos comportamentos decisórios me parece muito apropriado, por ser um jogo de soma zero, com ponto de sela e maximin presumivelmente existentes. Primeiramente por que seu ponto de sela e maximin estão situados em limite inalcançável tanto humanamente quanto tecnologicamente, posto que, das 10E180 (dez expoente cento e oitenta) situações possíveis, resultam estratégias absolutamente inquantificáveis. Mas também por que sua complexidade sujeita-o a determinantes históricos tão múltiplos que podem compreender até opções estéticas. O que se torna patente para mim, feitas essas comparações é a inexeqüibilidade da ação dissociada de um interesse motor, a racionalidade da ação decisória mesmo quando a solução do jogo é inexistente – ou inatingível, o que tem o mesmo efeito, o caráter a-histórico da opção final. Não se aplicam a objeções marxistas ao individualismo metodológico segundo tal análise. O que foi colocado até aqui é que cada ação não é determinada historicamente. Tal afirmativa não pode ser transposta para o conjunto das ações. A racionalidade implícita de cada decisão do jogador está subordinada ao grau de informação que ele tem sobre a situação em que se encontra: conhecimento de tática e estratégia, conceitos valorativos, senso posicional adquirido pela prática, estudo das partidas dos adversários e dos jogadores mais conceituados. O coeficiente de racionalidade pode ser avaliado em função da informação teórica de que o enxadrista está munido, e não em relação a um ponto de sela indeterminável e estratégias dele derivadas. De tal observação decorre que, se cada lance não é determinado, quer por considerandos histórico, quer por motivos de ordem estratégica, e sim pela racionalidade imediata da situação taticamente considerada; o mesmo não se observa em relação às opções de maior alcance. Certamente nas ações tomadas em seu coletivo notar-se-ão fatores inegavelmente oriundos de determinantes históricos. Se cada lance na partida de xadrez é arbitrário, sujeito a passionalidades momentâneas e determinado pela busca de eficácia na consecução do objeto tático, a opção feita pela linha de abertura, ou pela defesa adotada, são ambas determinadas de forma inteiramente influenciadas por fatores alheios ao campo exclusivo da racionalidade decisória; há determinantes na escolha de linha de conduta, no xadrez ou fora dele, que compreendem tanto racionalidade pura quanto componentes ambientais. O enxadrista não está isolado das normas determinantes de seu procedimento ou das teorias elaboradas sobre os diversos temas do jogo, não joga necessariamente segundo a opinião corrente em cada situação, não pautará compulsoriamente suas opções pelas análises de seus “segundos” (analistas que acompanham os mestres em campeonatos). Acho que a maioria das observações que fiz quanto ao xadrez são transportáveis para a realidade social, sem grandes distorções em relação ao modelo. Não constituem, de forma alguma, novidade as comparações entre o jogo de xadrez e outras situações complexas. Nem foi meu interesse inovar por aí. Pretendi apenas fazer menção à experiência pessoal – a dos sonhos – que considero comportar intrigantes aspectos da relação com o adversário na disputa racional, principalmente considerando a própria racionalidade como o componente gerador da situação.
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