Nação Valente
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outono
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« em: Outubro 06, 2011, 23:29:57 » |
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Nos tempos da guerra colonial e do serviço militar obrigatório todos os jovens, todos incluindo os coxos passavam pelo exército nacional . A preparação militar visando os palcos coloniais da guerra era rigorosa e exigente. Nos descampados de Tavira fazÃamos aplicação militar durante todo o dia. marchar correr, saltar, rastejar até mim dizÃa-nos uma voz cada vez cada mais distante. Fizesse sol ou caÃsse chuva, mesmo a picaretas, tÃnhamos de cumprir o programa diário. Muitas vezes chegávamos rotos, sujos, empapados, o corpo só nos pedia uma posição horizontal nem que fosse num catre de sumaúma. Mas não, porque ás vezes ainda arrastávamos os desconjuntados ossos por marchas nocturnas ou exercÃcios de orientação com bússola, perdidos na escuridão de caminhos desconhecidos.
Um dia, quando o cansaço me entorpecia o corpo e o espÃrito, ouvi a voz firme do oficial de dia gritar: quem estiver doente dê um passo em frente; arrastei-me decidido para fora da formatura. Ao mesmo tempo um ruÃdo de botas cardadas quebrou o silêncio da parada. Formou-se logo ali um pelotão de adoentados que marchou até à enfermaria. Depois de observados e medicados pelo doutor, ocupámos o nosso lugar na sala de recuperação. Umas horas depois, quando nos preparávamos para dormir o maqueiro de serviço informou. Preparem-se que para a visita nocturna do senhor doutor. Ficamos estupefactos. Visita de médico ? Que luxo?
Uma silhueta de contornos esbranquiçados e estetoscópio, acompanhada de um alferes de instruçao avançou na penumbra. Deslizou por entre as camas e foi ouvindo as queixas dos putativos doentes. Ao meu lado o Craveiro desfiou um rosário de maleitas que nunca mais tinha fim . O senhor doutor ouviu-o pacientemente e quando acabou a ladainha fixou-o nos olhos com bonomia e afirmou numa voz pausada, Rapaz tu és um catálogo de doenças. Levanta-te e corre à volta da enfermaria. O atarantado doente virtual correu e tornou a correr, até que o senhor doutor levantou o braço e disse: já chega...volta ao teu lugar. Na cama seguinte estava o Sampaio, o único que se encontrava realmente enfermo. O infeliz cozido em lume brando por uma febre de quarenta graus mal conseguia abrir os olhos. Ainda assim o senhor doutor mandou-o levantar e fazer dez flexões. E apesar do febrão executou-as na perfeição. Um outro internado que se queixava do estômago ficou esquecido numa maca um tempo infindo. Acabada a visita a todos os sornas da enfermaria e aplicado a cada um um estranho tratamento, o senhor doutor dirigiu-se para a porta, sempre acompanhado do austero oficial. Quando a sua imagem estava quase a desaparecer do nosso horizonte visual, virou-se de repente como quem vai dar um último conselho: queriam visita nocturna de médico... não queriam mais nada seus parvalhões? Depois de uma primeira reacção de espanto, uma sonora gargalhada matou um silêncio ensurdecedor.
O falso médico era afinal o Martins, um internado residente que encontrara uma solução permanente para fugir à dura vida de um recruta em formação e que para sobreviver à pasmaceira da vida hospitalar inventara esta imaginativa recepção, aos sornas transitórios que diariamente se "enfermiarizavam". E ainda organizava concursos para matarmos a monotonia nos longos dias de internamento. Quando pedi alta para voltar à liberdade dos serros de Tavira o senhor doutor pediu-me desculpa pelo incómodo e desejou-me melhoras definitivas. Nunca mais o vi, mas fiquei com a sensação de ter conhecido o melhor médico do mundo.
MG
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