Antonio
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« em: Abril 14, 2008, 13:07:09 » |
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Ãlvaro caminhava lentamente por uma rua da cidade cosmopolita e olhando com atenção para tudo, mas especialmente para as pessoas. Eram umas quatro da tarde de um dia em que o céu nublado e cinzento avisava que poderia chover. Mas isso não o incomodava: havia muitos locais para se abrigar. Mais a mais trouxera a sua gabardina comprida e clara, estilo anos 50, similar à que os detectives do cinema divulgaram. De vez em quando parava a olhar mais atentamente para alguém que caminhava lenta e pachorrentamente, ou alguém com a pressa dos sempre atrasados, ou para alguém parado, sozinho a ver uma montra ou na conversa com outrem, ou para alguém que estava ou se deslocava dentro de um carro, ou observava um prédio ou uma casa ou uma vitrina ou uma porta ou uma janela ou o que quer que fosse. Por vezes estacava para tomar apontamentos num pequeno caderno. Era de estatura média e tinha cabelos grandes e ligeiramente grisalhos. Mas o que mais o distinguia eram uns óculos de lentes circulares suportadas por uma velha armação feita com liga de alumÃnio. A certa altura resolveu retemperar energias: entrou e sentou-se dentro de um café a ouvir do que falavam as gentes. Já escutara conversas daquelas muitas vezes, mas agora os sentidos estavam num estado superior de alerta. - E o vilão do homem fugiu com a sirigaita e deixou a mulher com as três crianças – soou da mesa do lado onde estavam duas senhoras septuagenárias e com aspecto de possuÃrem boas posses. Apurou o ouvido: - E quando foi isso, D. Amélia? - Há mais ou menos um mês. Depois escreveu do Brasil a pedir desculpa e a dizer que quando pudesse mandava algum dinheiro. - E a pobre da mulher como consegue viver com só com um ordenado? - Felizmente ela trabalha nessa coisa de computadores e ganha mais ou menos bem. Mas os pais dão-lhe mais algum para poder sustentar os filhos e mantê-los a estudar. A D. Bela sabe que agora não se pode trabalhar antes dos dezasseis anos, se não me engano. Só clandestinamente! – informou a que conhecia o assunto. - Vidas, D. Amélia! Vidas! E ele ganhava bem? - Era empregado de um oculista. Parece que sim. E não deve ter dificuldades em arranjar trabalho lá no Rio pois era um bom profissional...confesso que não tenho a certeza se está no Rio de Janeiro. - E quem é a galdéria? – perguntou a Felisbela. - É uma mulata...cá para mim é mesmo preta! Mas daquelas mais claras! – e continuou - Agora veja: trocar uma mulher bonita e com uma pele tão branquinha por uma que cheira a catinga! E parece que era manicura num desses cabeleireiros de mulheres e homens. Uma desmiolada, certamente. Mas os homens perdem a cabeça com muita facilidade. Felizmente o meu Irineu sempre teve juÃzo. Ai dele se não tivesse! – disse a Amélia. - Não deve ser boa rês, a preta. Qualquer dia o homem aparece aà arruinado e a pedir para ir novamente para casa. - Se calhar tem razão! Mas era bem feito que a mulher o mandasse bugiar! - Se era! Se era! – concordou a Bela. O Ãlvaro saiu depois de beber uma meia de leite, comer dois triângulos de fiambre e tomar umas notas no pequeno livrinho. Um pouco à frente viu uma mulher, seguramente ainda nova, mas visivelmente envelhecida por uma vida madrasta, com uma criança de meses ao colo e pedindo esmola. Estava junto da porta de um estabelecimento de pronto-a-vestir com um nome italiano, de onde entravam e saÃam pessoas que nem a viam nem ouviam a sua ladaÃnha: Dê-me uma esmolinha que eu peço por si a Nosso Senhor Tentou meter conversa ao mesmo tempo que lhe entregava uma moeda: - Então só tem esse filho? - É uma menina! – corrigiu – Não! Tenho mais três. - E estão na escola? - Escola? Estão a pedir esmola noutra zona. - E o pai? - O pai? Sei lá do pai? - Confesse que vai usar o dinheiro que arranjar em droga... - Ora! Este não! Este é para comermos os cinco. - Mas tem ar de quem se injecta... - Para isso vou vender o meu corpo à noite! - Ahh... – deixou escapar, o curioso. Não conseguiu dizer mais nada. Tomou umas notas, retomou a passada lenta e continuou a vaguear até que virou para uma rua mais estreita e muito mais antiga, quasi sem betão. Viu um homem, ainda novo, de óculos negros e uma vara de alumÃnio com a qual batia no chão. Caminhava rápido, o fulano. Mas o piso era irregular e um tropeção num paralelo mais saliente fê-lo tombar. O homem observador foi lesto ajudar o cego a levantar-se: - Magoou-se? – perguntou. - Não, obrigado! - Deixe que eu ajudo-o nesta rua que tem um piso muito irregular – ofereceu-se o Leite. - Não vale a pena! Agradeço na mesma mas já estou habituado a cair aqui. - Mora nesta rua? - Sim! Moro ali para cima, numas águas furtadas. Vejo-me atrapalhado para descer e subir escadas e para circular na rua. Bem gostaria de ter outras condições de vida mas não tenho famÃlia e um acidente de trabalho deixou-me sem ver, - Então está reformado? - Ainda não! Estou pelo seguro mas vou-me reformar. Já ando a aprender Braille e outras coisas para ver se consigo arranjar um trabalhinho porque a reforma vai ser muito pequena. - Vai, com certeza! Mas a cegueira é uma deficiência que permite ter uma vida de trabalho activa – falou o Leite. - Por isso eu tenho esperança e estou a lutar. Vou continuando, se não se importa...e muito obrigado! – despediu-se o invisual. - Então, se não quer ajuda, desejo-lhe boa sorte – disse o Ãlvaro. E ficou a ver o outro a descer a rua: - Não me admiro nada que esteja sempre a dar trambolhões... – cogitou. Viu as lentes a ficarem molhadas. Começava a chuviscar. Entrou numa taberna que estava ali pertinho para se abrigar. Uma daquelas muito antigas e com cheiro a carrascão no ar. Olhou para o relógio e pensou: - Ainda é cedo mas vou jantar qualquer coisa. Sentou-se no banco alto do pequeno balcão ao lado de um tipo de meia-idade, muito mal vestido. Pegou no telemóvel e falou: - Ó Sara! Não vou jantar a casa. Mas não chego tarde. Tenho muitos dias para andar a fazer isto. Escutou e respondeu: - Não te preocupes que não me acontece nada. Já recolhi alguns apontamentos interessantes. Depois conto-te. Agora vou comer qualquer coisa ligeira porque começou a chover e abriguei-me numa tasca. Até logo! Está sossegada! Um beijo. Desligou, olhou para o lado direito e viu o homem andrajoso a beber vinho tinto. Meteu conversa: - Já começou a chover! Como resposta ouviu uma voz entaramelada pelo álcool dizer: - É pena não chover carrascão! Punha um penico a apanhar a chuva e poupava dinheiro. - E ainda bebia mais... – comentou o Leite em tom de censura. - Quanto mais melhor! Assim não penso na porcaria de vida que tenho levado. Sabe que já estive várias vezes na prisão? Sempre por roubo. Instintivamente, o Ãlvaro levou a mão à carteira enquanto o bêbedo continuava: - Nunca matei ninguém, nem violei, nem magoei. Quero dizer: magoei a minha mulher e os meus filhos com este meu vÃcio de roubar. Abandonaram-me. Nem fiz grandes assaltos...vou só roubando umas coisitas aqui e outras ali. Um homem grande e gordo que estava atrás do balcão aproximou a cara da orelha do atento ouvinte e disse: - Sofre de cleptomania! Até já sei dizer este palavrão. - Ahh... – abriu a boca, o cliente. E o borracho continuava a falar sem saber se estava ou não a ser escutado: - Nunca tive problemas na prisão. Quando roubava, depois devolvia e não me faziam mal. Entretanto o Ãlvaro Leite começou a comer uma sandes de presunto acompanhada por uma cerveja muito fresca e disse: - E vive sozinho? - Vivo sozinho num quarto alugado. Quem mo paga é um senhor para o qual trabalhava quando fui preso pela primeira vez. O meu primeiro patrão, percebe? Era eu moçoilo... E prosseguiu: - Podia ter sido preso em muitas outras ocasiões mas os juÃzes têm pena de mim. Eu à s vezes digo-lhes que é melhor estar na prisa porque tenho a companhia de muita gente e tenho cama, mesa e roupa lavada. Por isso não me importo de ir de cana. Qualquer dia faço um assalto a um banco para a apanhar uma pena que me deixe lá dentro até ao fim dos meus dias. - Mas não sabe onde está a sua mulher e os seus filhos? - A velha juntou-se com outro. Os dois rapazes...tenho dois rapazes...não me ligam nada. Estão casados e já tenho netos, mas nem sei quantos. E o pobre homem continuou a desfiar o seu longo rosário de mágoas. Depois de comer, o Ãlvaro tomou umas notas, pagou e dando uma palmada nas costas do desgraçado, disse: - Gostei de ouvir a sua história. Boa sorte e boa noite! E saiu.
(escrito em 26 de Setembro de 2007)
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