Maria Gabriela de Sá
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« em: Janeiro 13, 2014, 22:08:24 » |
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É algures na curva situada entre a tragédia e a comédia que se vai desenrolando o dia-a-dia de cada um e onde todos nós pomos ou tiramos as mil e uma máscaras da vida, num teatro montado nos locais mais inusitados.
Hoje, o palco é a coxia de um comboio de uma carruagem de 1ª classe, apinhada de gente, aquele cubículo reservado a fumadores. A CP, a dos caracóis na TV, que promete dar tempo aos passageiros, alheou-se completamente, como já vem fazendo há um ano, de uma qualidade de viagem devida aos viandantes, comprimindo-os nas composições como sardinhas em lata.
Entre actores e espectadores, encontro-me à boca de cena, mente aberta a eventual intervenção, numa dinâmica interactiva que há-de desdobrar-se em sorrisos velados, crítica social ou simples comiseração pelos comediantes.
No chão, sentadas à entrada, vão duas jovens estudantes. Com a permissividade do letreiro azul fixado sobre as portas de entrada, preparam-se para saborear os seus cigarros, dispostas a fazerem companhia ao meu fumo, quase a apagar-se.
Cinco ou seis passageiros habitam por ali, num silêncio de simples observadores. Entre eles, um pé dentro da carruagem e outro no vestíbulo, vai uma mulher dos seus quarenta e cinco anos. Quando se entra, não dá aspecto de aspirar ao desempenho de um qualquer papel no circo montado diariamente pela CP, no comboio com partida às 18h10 na Estação de Campanhã.
A criatura olha-me através das vidraças dos óculos, observando o meu moribundo cigarro que, finalmente, fenece. Já antes me havia observado, calada, os dedos de onde pendia a minha pequena chaminé fumegante.
Deve ter pensado, talvez, que não teria letra para a minha idade, quando, afinal, era eu quem não tinha nem idade nem letra para a sua educação.
Os cigarros das duas raparigas sentadas no chão acendem-se, por fim:
Ó meninas! F...-se lá o tabaco!... Fumem charutos do abano! São bons e dão para todo o ano! Andam para aí a matar-se com essa merda quando podiam fazer amor durante mais tempo.
As moçoilas abrem-se num riso sufocado e até às lágrimas, embaladas pelo ridículo da cena.
Não se riam! O charuto é que é bom e eu gosto! Agora mesmo ia um bem grande... Vocês, se fossem rapazes haviam de ficar sem tusa... É o que os cigarros fazem!.. Em vez de lhes darem essas lambidelas, dêem-nas noutra coisa que é bem melhor...
O apeadeiro de General Torres fez a sua aparição com a entrada de novos passageiros, já o monólogo se transviara num medicamento milagroso.
O que vos vale é que agora vai haver Viagra para mulheres, senão, quando tivessem a minha idade não davam duas para a caixa.
Agora, a deixa da mulher arrancara os primeiros risos soltos e a cena estende-se a uns velhotes de fresca chegada que, mal ouvem a palavra medicamentosa, assumem, logo ali, os seus papéis de actores, prosseguindo o diálogo:
Tem razão! O Viagra é que é bom! − disse um deles.
Não me diga que já experimentou? − pergunta a protagonista da viagem.
Eu não! Respondeu, categoricamente machista e cheio de brio por eventual desempenho íntimo − Mas se um dia precisar...
Faz muito bem! É bem melhor isso do que o tabaco! F....-se lá o tabaco...
E o riso dos que tinham riso para rir desprendia-se no ar, E os silêncios dos que não tinham nem sequer um sorriso faziam-se sentir, E a memória de quem tinha um pouco de tudo mas não o queria desperdiçar com um vaudeville barato reteve a cena para esta crónica de viagem, que teve por musa inspiradora a vida na coxia do comboio da CP, onde viaja gente com passe suburbano, a maioria, de 2ª.
E tudo isto pelo preço de um bilhete em 1ª classe, que deu direito a comédia. Muito mais do que f...-se lá o tabaco, talvez pudesse dizer-se, num eufemismo velado: Lixe-se lá a indiferença com que a CP trata os passageiros!
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