DEIXA-TE FICAR EM CASA

[Maria Gabriela de Sá]

Deixa-te ficar em casa
Calça os teus chinelos velhos
E sente a alma à casa e aos chinelos
O seu pulsar
A respiração
Acrescenta-lhe um pedaço da tua
Própria alma
Faz dos teus chinelos velhos
E da tua casa um poema
De qualquer hora.
Um poema da manhã
Do pico do dia
Ou do entardecer rosado
Da chuva que bata na vidraça da tua casa
Em sincronias aleatórias orquestradas pelo vento.
Corta as folhas velhas às plantas
Revolve-lhes um pouco a terra seca do verão
Para que se inundem da nova seiva do outono
Antes da primavera.
Arruma os livros da tua biblioteca
Por tamanhos
Autores
Poesia ou Romance.
Zanga-te com as editoras
Que colocam os títulos nas lombadas
Ora da esquerda para a direita
Ou ao contrário
Confundindo-te a busca
De cada vez que precises de ler certas palavras num livro definido
Para um conforto de alma.
Endireita os quadros da parede
Corta os liames da superstição
Que fala de azares na casa pela magia negra de um quadro torto.
Arruma as tuas gavetas
Rasga os papéis velhos a que o tempo comeu a tinta
E debotou intenções.
Deita-te a seguir no sofá da sala onde o sono é sempre bom
E mesmo de chinelos nos pés
Dorme o sono dos justos
No conforto da tua casa
Com a alma inundada de claridade.