marcopintoc
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« em: Julho 22, 2008, 16:27:15 » |
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O toque do clarim liberta o murmúrio que enchia os milhares de gargantas de nó formado, uma vigorosa salva de palmas enche a praça. Manuel amputa, com um gesto rápido em busca do maço de tabaco, o seu olhar congestionado de emoção e a reza que proferiu durante toda a lide. A procura do isqueiro justifica o seu retorno ao diálogo : - Bom touro. Grande Matador . Queres ir beber uma cerveja? Essa pergunta desperta-me do torpor contemplativo em que me havia deixado cair durante os hipnóticos movimentos do capote. Desde que entrei em Las Ventas ainda não falei com os dois colegas que me acompanham, Alfonso e RodrÃguez , e não será desta vez que o farei. Os polegares estão agitados na consulta dos PDA’s. Resolvo aceitar a cerveja. Entram os picadores, com uma sacudidela apresso Manuel que já virava a sua atenção para a arena: - Vamos. Não gosto desta parte – começo a subir as escadas. Quatro degraus abaixo Manuel faz a última tentativa: - Não queres ver os picadores? - Não – vingo-me divertido – Sou Português. Vocês não percebem nada de touros a cavalo. Vamos! “ Que se jodaâ€! Manuel concorda, desde que um dia aproveitei uma promoção de uma linha “low cost†para devolver a sua gentileza tauromáquica e o trouxe ao Campo Pequeno a sua paixão pelos picadores tem vindo a decair. Lembro-me do seu olhar fascinado pela dança do elegante ginete desafiando o touro; do urro de vitória, que voltou muitas cabeças em nossa direcção, quando os rapazes do Aposento da Moita bravamente estancaram uma carga violentÃssima; o homem da cara e a primeira ajuda balançaram como fantoches pregados aos chifres embolados. Chegamos ao bar, o barulho é inenarrável, fala-se mesmo muito alto.Há gargalhadas sonoras, palmadas nas costas de velhos conhecidos, brindes efusivos, do balcão escuta-se a lenga-lenga do empregado – “Una caña , dos , tres , bocadillo , cinco mas†– uma imensa cortina de fumo vagueia sobre as cabeças , predominam os homens e as roupas escuras . Provavelmente é o contraste com o negrume das vestes que me desperta, pelo canto do olho ,para a chegada da mulher de vestido branco que contemplei à entrada do primeiro da noite. Agora vejo-a de mais perto. É uma magnifica filha do sul ; o sangue árabe de Granada mistura-se com o orgulho da mulher hispânica. Não é mulher de cidade, as mãos apresentam um rugosidade que não se adquire em teclados e roupas de centro comercial. Cheira a aldeia, à s rédeas e arreios de alazões. Deve atiçar violentas paixões ; por ela, navalhas já decerto se cruzaram. Pasmo sem qualquer circunspecção. Uma cotovelada de Manuel atenta-me para um enorme par de olhos verdes escudados em grossas sobrancelhas que estão cravados, com um brilho de ódio, em mim. Longas patilhas, dose excessiva de brilhantina e uma fisionomia bastante comum para as bandas de Sevilha. Deve ser a navalha que ganhou. Pego rapidamente na cerveja e ensaio com Manuel uma rápida retirada. Durante todo o percurso, até à saÃda do bar, sinto um mau-olhado gitano cravado na nuca. Manuel apressa-me, vai iniciar-se a sequência de bandarilhas. O objectivo deste acto é alargar o espaço de carga do touro e ,portanto ,aumentar o seu cansaço. O animal terá agora cerca de cinquenta metros para ganhar velocidade em direcção ao alvo, aparentemente inofensivo, que o aguarda do outro lado do redondel. Está bastante irritado devido à acção dos picadores. Os grandes Matadores bandarilham sós na praça. Um “lidador†coloca o touro em posição para a investida e retira-se. A partir daà é o homem e o touro. Cara a Cara. Pelo “frisson†nas bancadas este é um desses casos. Manuel senta-se rapidamente e acende mais um cigarro. Os movimentos de capote do “lidador†amainam, a besta está alinhada. Por felicidade o matador cita bem junto ao nosso sector. Silêncio nas bocas, a banda entoa um “pasodoble†; devido à proximidade escuto perfeitamente a voz desafiante: - Toro , Amor , Ei , Toro ! Do outro lado dois olhos mÃopes e sulcados de sangue encontram-no, a sua roupa brilha sobre as luzes; um primeiro passo dos cascos despoleta uma corrida furiosa . quase sinto o chão da praça trepidar sob o galope. Imóvel “El Juli†espera , ergue os braços , a postura é elegante . A emoção faz com que os corações bombeiem mais depressa, acompanhando a passada do touro. Quando distam quinze metros entre o corpo do toureiro e as pontas aguçadas, o homem inicia uma corrida para o seu lado direito, a trajectória do animal desvia-se, a cabeça baixa preparando a cornada , um salto transforma o corpo do bandarilheiro em uma curva perfeita que termina com o cravar brutal dos ferros no cachaço do touro. Os chifres golpeiam o vazio, pretendendo as entranhas de quem tal dor provocou. O sangue espirra em abundância; na fila inferior uma pele pelada pela torreira de Benidorm não contêm a golfada. Um pequeno sururu de indignação e desprezo percorre o sector desaprovando tão fraco estômago. O segundo par de bandarilhas é cravado com menos triunfo. Termina o tércio . A ovação é mais curta que a primeira da noite, sento-me e peço um cigarro a Manuel. A expressão no seu rosto demonstra uma melancolia que é traÃda por um brilho intenso nas pupilas. É quase paradoxal a contradição naquele rosto enrugado: - O que é que se passa? – Inquiro após acender o cigarro. O clarim ecoa. Manuel exclama: - Agora o bravo animal morrerá. Talvez haja glória. No centro da arena inicia-se o final. Muleta e Espada.
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