Vóny Ferreira
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« em: Agosto 24, 2008, 18:53:19 » |
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Não quero que durmas, pai... Guarda essa sonolência mórbida que te torna apático e triste, para a noite que se aproxima, porque à noite os fantasmas não vêem, por isso é que resolvem fazer os seus barulhos teatrais, de sonâmbulos enlouquecidos. Hoje preciso que me respondas à s minhas duvidas, aquelas que me atravessam o espÃrito e me entristecem, aquelas imensas duvidas que o espicaçam com agulhas transformadas em extensividades e o infernizam com a sede dos desertos. Preciso que me ouças, ouviste? Alguma vez me ouviste, pai? Ah... se soubesses! Se soubesse o quanto precisei em determinados momentos que poisasses o jornal e me sentasses nos teus joelhos, como quem zela por um anjo com cabelos da cor da espiga! Nunca te apercebeste disso pai? Porque foste sempre tão distraÃdo? Não... isto nem sequer é um lamento! É a constatação mais crua que algo se perdeu no tempo, e no entanto teimo em regredir no tempo com saudades de ti e de mim... rever-me a miúda triste que fui, que se punha a olhar-te através dos espelhos da sala, numa condescendência de pássaro ferido. Tal como nessa altura apetece-me perguntar-te com voz de grilo enrouquecido. - Pai, porque não largas o jornal?
Preciso que me ensines o que é o vento. Que me expliques porque nascem as borboletas de horrÃveis lagartos. Porque corro atrás delas com a pressa de uma flor bravia, empurrada pelos instintos selvagens de uma gazela assustada. Porque me deleito com a natureza, se tenho idade para brincar com bonecas e não para pensar nos porquês da vida? Que masoquismo infantil é este? Pai, porque não largas o jornal?
Os meus lamentos ficaram para sempre fechados nas conchas da praia, como se os afogasse propositadamente, zangada contigo, enquanto me entretinha a mergulhar no mar sereno que me aguardava com a envolvência de um céu molhado. Precisava que me ouvisses, pai! Por favor... larga o jornal! Tu és o meu herói com pernas de girafa, com voz de vento a açoitar as folhas das mangueiras, por isso vá lá... larga esse jornal e ouve-me. Pai... ouves-me?? Queres que te mostre os meus segredos de espuma? aqueles que guardei num baú de pau preto? É nesse bolorento baú que guardo os papeis agora amarelecidos pelo tempo. Ah... quantos sonhos ficaram ali encarcerados para sempre, como se eles e eu tivéssemos sido condenados à morte no preciso momento em que beijamos a luz do sol com o olhar! Às vezes sonhar muito, dói, pai! É inglório! É horrÃvel como a trovoada que me faz estremecer e correr para um recanto da casa. Sabias? Por vezes só a esferográfica faz ressuscitar as emoções vividas e as perpetua num ferro forjado como se fosse um papel branco, alvo como a neve. Não adormeças, pai, por favor... não quero que durmas. Agora já me basta que me olhes mesmo que não me vejas... quero sentir-te nessas mãos estranhamente geladas, e ouvir a tua voz quente e poderosa chamar pelo meu nome. Não... pai! Nunca estive zangada contigo. Se à s vezes não te compreendi, é porque o sonho que eu trazia no coração,foi uma espécie de condor, que desejou sempre voar mais além do que merecia, certamente...
- Pai...! Hoje trago-te o jornal! O Benfica ganhou, coisa rara, nestes tempos de águias feridas. Pai... pai... não quero que durmas!
Vóny Ferreira
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