Pedro Ventura
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« em: Agosto 25, 2008, 21:03:08 » |
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Arrasto-me como que a medo. Estranho o lugar, ou ele a mim. Subo a luz do candeeiro esférico que pende do tecto, mais parece um sol artificial eclipsado há muito. Percorro o olhar em meu torno. No ar circula um ligeiro cheiro a bafio. Decorridos quinze anos, e tudo estava no seu lugar, intocável. As duas paredes de um e de outro lado, atolhadas de livros, de palavras que fazem vergar as tábuas das prateleiras. Numa delas, o fruto do trabalho de quase trinta anos, de uma existência agora sem qualquer significação, dos livros que escrevi, todos com a mesma dedicatória, “À LuÃsa, minha mulher e inspiraçãoâ€. O sofá rubro, de um só lugar, onde tantas noites me moldava a tragar whiskey e a cogitar, ou somente a contemplar o céu pejado de minúsculos pontos brancos, e um maior, a lua. A mesa de trabalho, que outrora era o amontoado de papéis rascunhados, agora arrumadÃssima, defronte à janela que dá para o jardim com o velho limoeiro no seu auge, carregado de fruta. Cedo um passo, e outro, os dois tÃmidos. Puxo a cadeira para a retaguarda e sento-me. Afago o teclado hirsuto da velha máquina de escrever, que me mira como se não me conhecesse, como se os meus dedos lhe fossem estranhos. O silêncio é pesado, sinistro, melancólico. Não sei o que faço aqui. Tenho vontade de chorar, mas estou seco por dentro. Estes anos levaram-me todas as lágrimas que tinha, sou um deserto. Um pouco trémulo das mãos desabituadas, engato uma folha amarelecida no cilindro. Respiro fundo, muito fundo, até não caber mais ar dentro de mim. Enceto, como se fossem as minhas últimas palavras, como se as batucadas do meu coração fossem cada vez mais espaçadas, ou se cada uma fosse o eco de uma só, e escrevo: “Nunca pensei que a arte das palavras fosse uma arte tão egoÃsta. Desculpa, ter-me esquecido de ti. Sei que agora é tarde demais, mas sei que te continuo a amarâ€. “À LuÃsa, minha mulher e inspiraçãoâ€. Quedo, absorto, deixo-me ficar, deixo-me morrer.
2003
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