Novamente, fiz tudo o que ele me pediu, possíveis e impossíveis, os imagináveis e também tudo aquilo que ele nunca imaginou eu fazer. Mas que desejará ele mais? Faço tudo em casa, sou a miúda de 17 anos que já não é criança, mas dona de casa e sobretudo mãe de si própria. Minha mãe morreu dois anos depois de eu nascer, e fiquei sozinha, com meu pai, meu monstro, pessoa que amo e odeio ao mesmo tempo. Juro... Juro, fazer tudo para o agradar, sempre com um sorriso na cara, mas é impossível, o seu gosto pela bebida, torna-o uma pessoa fria, sem sentimentos, sem coração, uma pessoa capaz de me magoar, sem apresentar ressentimentos pelo ter feito. Mas que posso fazer? É meu pai... Novamente me encontro a caminho da escola, com marcas no corpo, e também marcas na cara visíveis demais para se tentarem ocultar... Cada dia inventava uma nova desculpa, para os professores, porque não queria que soubessem o inferno onde me encontrava. Apenas tinha uma amiga, que sabia o que realmente se passava. Uma amiga apenas, numa escola com mais de 300 alunos. Não era popular, talvez o fosse, mas pelas razões contrárias. Eu era o alvo de chacota de toda a escola, sempre o tinha sido. Ninguém percebia, o porque das minhas marcas, ninguém percebia o porque dos meus desmaios, das minhas fraquezas, dos meus ataques de choro e também dos meus medos. Apenas Débora, mas fi-la prometer que nunca falaria da minha vida privada e sempre o evitou fazer. Esta ajudava-me em tudo o que era possível, por várias vezes me tentou convencer a entregar meu pai pelo que ele me faz, mas nunca tive coragem, não eu! Era mau demais para mim, não saberia o que disser, ou por onde começar. Actualmente minha vida é um inferno. Tenho medo de sair, medo de estar em casa, medo de ir á escola, aliás medo de tudo. Meu apoio és tu Débora e espero que nunca desapareças. De volta a casa, pelo caminho despeço-me de Débora, esta apenas me diz, "Força, e até amanhã". Não a censuro, ela não pode fazer muito por mim, sou eu que tenho de reagir não ela. Por vezes chego a pensar que ela tem mais força que eu, que sou uma fraca, que apenas vivo assim por minha própria culpa, que talvez até mereça. Mas que farei eu de mal? Pois sempre aprendi que apenas nos batem quando fazemos algo mesmo mau, e eu... Eu que procuro fazer sempre tudo bem. Porque? Também aprendi, que nada se resolve com violência, mas sim com palavras, porque será então que meu pai não me fala? Porque será que todos os seus gestos sejam para me magoar? Já vejo a minha casa, meu coração bate mais forte, meus olhos entristecem e meu medo aumenta. Abro a porta de entrada, e já oiço meu pai aos berros, reclamando com tudo, dizendo que a casa está uma confusão, dizendo que como mulher de casa deveria estar atenta a isso, mas como? Se uma coisa da qual não quero desistir é a escola, não, nunca! Ele não me irá tirar esse meu sonho... O único local que mesmo sendo criticada, posta de lado, envergonhada, pisada, me sinto bem. Porque apesar de todo o sofrimento que passo lá, nada se compara aquele que eu vivo em casa e na escola posso contar com alguém, a única pessoa que me percebe, nada mais do que a Débora. Mal jantei, mal dormi, as marcas do seu pesado cinto, ainda continuavam cravadas nas minhas costas, o sangue fresco nos meus olhos ainda se encontrava presente. Já não conseguia chorar, muito menos largar qualquer palavra, meu corpo parecia ter sido atingido violentamente por algo com o dobro do meu peso. Seria eu obrigada a viver assim para sempre? Não teria eu direito a escolher uma vida para mim, não teria direito a não ser machucada dia após dia? Já tinha decidido isto iria acabar e já amanhã. Fechei por fim os olhos esperando poder dormir pelo menos a hora que faltava até ao amanhecer, sabendo que o dia seguinte seria muito importante. Ainda o sol não se via quando abandonei minha casa, sabia que tinha de sair antes de meu pai acordar. Sabia que nada poderia levar comigo, apenas a coragem, determinação e loucura para me livrar de vez de tal sofrimento. Caminhei longos quilómetros, em direcção a uma praia à qual recorria muitas vezes em momentos de sofrimento. Não posso dizer que não estava a sofrer porque estava, mas desta vez as razões eram diferentes. No topo daquela ravina eu observava o mar, reflectido pelos primeiros raios de sol de um novo dia, o meu último dia, o meu último amanhecer. Sentei-me num rochedo, pensando se valeria à pena, arriscar, acabar assim desta forma com tudo. Passaram-me frases de Débora em minha cabeça, das alturas em que ela me dizia, que existia sempre a polícia, que existiam pessoas que me podiam ajudar. Acreditava que sim, mas não tinha forças para as procurar. Não tinha coragem de contar tudo o que meu pai me fez, preferia acabar tudo de uma vez, e levar toda a minha vida comigo, afim de evitar perguntas. Não tinha muito tempo... Sabia que agora era o momento. Aproximei-me do precipício determinada a acabar minha vida para todo o sempre. Não pensei, ia atirar-me, mas uma voz forte, fez-me parar. Esta gritava "Para! Não faças isso, por favor!". Não sei porque, mas inspirou-me confiança e não o fiz, simplesmente parei, enquanto tentava ver de onde viria aquela voz. Olhei a meu redor, não vendo ninguém. Pensei ser meu pensamento e precipitei-me novamente em frente, mas a voz soou novamente "Não o faças estou mesmo aqui". Neste mesmo momento sinto alguém a tocar meu ombro, assim que me viro, vejo um rapaz, que me diz "Vamos ter calma, penso que precisas de falar. Segue-me!". Foi o que fiz... Hoje sou mulher, tenho vida, encontrei a vida, posso até dizer que nasci novamente. Poderia gastar palavras que descrevessem tudo o que aconteceu até hoje. Mas basta uma simples carta, a única que mandei, depois do meu desaparecimento, para a única pessoa que não queria perder, a Débora.
"Olá Débora,
Que saudades que tenho de ti... Desculpa, não estar a teu lado, desculpa não te ter dado ouvidos, mas não te preocupes eu estou bem. O que se passou foi que, eu estava prestes a cometer um crime comigo própria, e nesse mesmo momento, foi salva, pela pessoa mais espectacular deste mundo, com a qual vivo e namoro neste momento. Desculpa se te deixei preocupada, sei que o fiz, mas esta carta prova que não te quero perder, porque sempre foste a pessoa que me ajudou, mesmo não tendo ajuda possível... Um obrigado do fundo do coração para ti amiga. Agora nesta minha nova vida, sei o que é amar, sei que nem todas as pessoas são más, sei que o meu pai o era... Tudo aquilo que me dizias... Encontrei finalmente o meu caminho, estou prestes a acabar o 12º ano, trabalho, e tenho uma vida feliz, porque me sinto útil. Meu namorado tal como eu, também teve uma difícil infância, vive sozinho, não mais! Mas vivia... Ele trabalha, pois a despesa da casa não é muito barata. Eu quis desistir dos estudos para ir trabalhar e ajudar a pagar, mas ele não deixou... Disse que tinha potencial para ir bem longe, e que sempre poderia trabalhar em part-time, que querido! Como te disse hoje sou feliz. Junto com esta carta vai um outro envelope, contendo a minha morada e número de telefone... Conto com o teu telefonema e visita.
Beijo na melhor amiga do mundo!"Que posso dizer? Acredito na vida... Tenho uma casa, tenho carinho, e continuo a ter as pessoas que amo ao meu lado. Hoje e finalmente sou uma rapariga feliz... Luta pelo que desejas, mesmo que as forças para o fazer sejam escassas... É a minha mensagem ao mundo.