[Parte I aqui][Parte II aqui][Parte III aqui][Parte IV aqui]A noite passou mas a surdez, está bom de ver senão a história seria bem curta e sem interesse, não passou. Talvez a solução para o problema fosse uma noite de sono mas como o José não dormiu não somos capazes de colocar esta teoria à prova. Margarida também não dormiu, não que o marido estivesse a fazer barulho, já sabemos que ele é um homem silencioso, mas porque o ruÃdo na sua cabeça não cessava, o mesmo ruÃdo que José não é mais capaz de reproduzir na sua mente, continuava a pensar nas implicações de ter um marido surdo, continuava a pensar porque é que ele tinha ensurdecido tão repentinamente, secretamente temia que fosse uma qualquer epidemia que não demorava a alastrar-se e também ela temia deixar de ouvir de um momento para o outro. Se foram estes os pensamentos que iam mantendo Margarida desperta, os que mantinham José acordado eram bem diferentes. Não é que ele não conseguisse dormir, era mais um não querer. Ele estava de tal modo feliz com a sua surdez que não conseguia parar de a aproveitar, mesmo durante a noite que, como sabemos, é altura em que todos os homens são surdos dentro das suas próprias casas. Os pensamentos corriam pela cabeça do José à velocidade da luz, eram, como já vimos, despidos da linguagem, não eram nem em português nem em inglês, nem em francês nem em italiano, tão pouco em latim ou grego, eram pensamentos autónomos de fonemas ou morfemas, eram pensamentos livres e por isso mesmo podemos afirmar que nesta altura, o José que era o mais surdo dos surdos era também o maior pensador do mundo.
Estou muitos furos atrás da capacidade de pensamento do José para conseguir enumerar aqui alguns dos pesados dilemas filosóficos que ele resolveu durante aquela noite mas certamente que o leitor acredita em mim quando digo que foram muitos. Passou metade da noite na cama ao lado da mulher a pensar até que percebeu que não podia simplesmente ficar com todo esse pensamento guardado só para ele, era preciso dá-lo ao conhecimento do mundo, era preciso transmiti-lo, e portanto levantou-se para escrever algumas das suas conclusões. Ao passar por uma janela que naquela casa fica permanentemente aberta, seja inverno rigoroso ou verão quente, não foi capaz de não se deter perante a lua gigante que estava na sua frente. Pensou, sem pensar já se sabe, Será que tudo isto não passa de um efeito qualquer da lua cheia, para logo se refutar a si próprio naquela maneira imediata que tem de pensar, agora que a linguagem mental o abandonou, Disparate, se fosse da lua sofria isto sempre que a lua estivesse cheia, e tinha razão, nada daquilo que se passava com ele tinha alguma coisa a ver com a lua. Com que tinha então, pergunta o caro leitor, e pergunta bem, tão bem que eu me recuso a responder a perguntas tão bem feitas e profundas, respondo apenas que a lua não é para aqui chamada e só falei nela porque nela pensou o José e se há coisa que já aprendemos até aqui é que o pensamento humano, por estúpido que seja, é uma coisa fantástica e não deve ser ignorado, portanto não ignorei também eu a parva questão lunar que atravessou a mente do surdo.
José sentou-se então à secretária do seu escritório, ligou o computador e preparou-se para escrever as coisas mais incrÃveis que a sua mente foi capaz de descortinar naquela noite, a primeira que passou sem qualquer ruÃdo e, portanto, sem qualquer distracção. Distracção, como já vimos, é uma palavra chave nesta história e é portanto também a primeira conclusão que o José tirou, tem direito a ser a primeira a ser escrita. Todo o som é distracção, foi a primeira frase que se desenhou no monitor do José, a primeira e a última não por falta de frases mas porque o surdo, juntamente com a capacidade de ouvir parece ter perdido também a capacidade de escrever. Ora esta, pensava ele, Porque não consigo escrever, ruminava ele. Ruminasse o quanto quisesse a verdade é que as letras que ele ia juntando lentamente, apenas por movimento mecânico não faziam qualquer sentido em qualquer lÃngua. Ele sabia que estava a escrever mal mas não conseguia corrigir e escrever como o comum dos homens. Como ele tinha escrito aquela primeira frase não faço ideia, talvez fosse uma qualquer capacidade residual que lhe restava dos dias em que ainda era capaz de escrever, ou talvez tivesse carregado nas teclas ao acaso e a frase formada estivesse de acordo com a sua vontade. Este será também para sempre um mistério a juntar aos muitos que já tenho aqui deixado por deslindar.
Sabemos que ele não perdeu a capacidade de ler e só assim percebe que perdeu a de escrever porque tentava ler o que estava escrito no monitor e para além daquela primeira frase não percebia mais nada. Ou será que tinha perdido a capacidade de ler e, no entanto, escrevia correctamente, ou será que estava já a deixar-se vergar pela loucura, ou será que tinha adormecido e sonhado que tinha ensurdecido e na realidade estava deitado na cama e o dia que foi aqui descrito ainda não tinha acontecido, ou será que outra coisa qualquer.
Não tinha adormecido, o dia estava mesmo a ser assim, a surdez estava mesmo lá e continuava, que já era dia claro, a mulher levantou-se e foi ter com ele, leu a primeira frase que o marido tinha escrito e também ela escreveu no monitor, como já se sabe é inútil para Margarida falar a este surdo, escreveu para lhe perguntar, Porque escreveste esta frase e depois não escreveste mais nada que sentido tivesse, Não sei, disse ele, Acho que não sou capaz de escrever, Porquê, pergunta a mulher, Não sei, responde o marido e desta vez o pânico é real para ele, de que vale a um homem ser capaz de pensar o mundo todo se o mundo todo não pode ler aquilo que um homem pensa. Valha de consolação ao José saber-se ainda capaz de ler, que a escrita foi a única capacidade a esvair-se com a audição. Se imediata ou progressivamente não se sabe porque foi a primeira vez que ele tentou escrever o que quer que fosse. Valha-lhe também saber que isto não é um sonho, porque como já vimos esta surdez agrada-lhe de sobremaneira, ele que é um homem que gosta de pensar e que vê nesta incapacidade a sua grande oportunidade para o fazer sem distracção, porque, como já vimos e ele foi ainda capaz de escrever, qual epÃgrafe, todo o som é distracção. O que não lhe vale de nada é consolar-se com a sua não loucura, porque podia estar louco sem nunca o saber já que admissão da falta de sanidade mental é já de si um passo racional, por isso qualquer doido que se preze não sabe que é doido e também o José, caso endoideça, não o vai saber, não é por ser surdo que as regras dos malucos não se lhe aplicam. E ele sabe disto e por isso mesmo diz à mulher em tom de testamento como se a loucura fosse uma morte precipitada, Diz-me se eu ficar maluco, ao que ela acenou em movimento afirmativo. Pensou para si própria, bem que podia tê-lo dito em voz alta que ele não era capaz de a ouvir, Será que já não estou eu a perder a razão, mas como sabemos as coisas tornam-se muito mais reais quando as ouvimos em voz alta, mesmo que a voz seja a própria. O que é certo é que se enlouquecerem os dois nenhum o saberá porque era preciso ser doido para acreditar em outro como ele.
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Na próxima parte, o primeiro desenvolvimento central...