A música, os estados de felicidade, a mitologia, os rostos trabalhados pelo tempo, certos crepúsculos e certos lugares querem nos dizer algo, ou algo disseram que não deverÃamos ter perdido, ou estão a ponto de dizer algo; essa iminência de uma revelação que não se produz é, quem sabe, o fato estético.
Borges
Lâmpada: este é meu nome. Colocada num plinto de mármore. A forma redonda, diferente das demais. Quando acesa, não consigo ver e tampouco ser vista. As possibilidades da memória e relato vêm quando desligada. A memória é transmitida pelo bocal. Ele arquiva a experiências das antecessoras. A visão é dada pelos filamentos.
Estou numa sala retangular. O recinto é uma célula de uma biblioteca. Uma das paredes é inteiramente de vidro, as demais repletas de livros dispostos numa ordem simétrica. Duas poltronas e um sofá sobre tapetes antigos completam a decoração. Entre os estofados uma mesa de apoio e sobre ela: eu e a campainha, colocada agora. Provavelmente chegará alguém para visitar o homem do Povo do Livro.
É calmo. Nove décadas de vida. A única indicação da idade é o cajado com castão que o acompanha. No mais é jovial. Viúvo. Os olhos expressivos, mansos, acompanham o sorriso permanente e enigmático. Prático e sábio. Começou a colecionar livros aos oito anos, e continua. Só os prÃncipes têm senso de medida; é rigoroso nos horários.
Diariamente, durante duas ou três horas, a moça lê em voz alta, uma obra escolhida. Posso dizer que a minha existência é longeva quanto a dele. Fico acesa por pouco tempo. Descanso a maior parte do tempo. Ele perdeu a visão, num azar do acaso, segundo ele mesmo sempre diz. A hipótese do excesso de uso, não poderia ser descartada. Hoje o tempo é de reflexão e calma. Ele já viu tudo que o homem foi destinado para ver.
Chega seu amigo. São duas e trinta horas. Conversam um pouco, perguntas recÃprocas sobre a saúde. Cafés sem açúcar para ambos.
Durante a conversa escapa do amigo a visita à torre de Montaigne. “Ah, você esteve em Bordeaux?†“Sim, fui até lá e visitei também a casa de La BoétÃe, em Sarlatâ€. “Esse é um dos meus autores prediletos, você sabe, não?†“Sei. Você escolheu uma frase dele para seu ‘ex-lÃbris’â€. “Você tem uma boa memória. A minha está um tanto danificada, principalmente no departamento dos nomes próprios. A cada dia que passa, tenho mais dificuldades para lembrar-me deles. Nada que o tempo não resolva. Tenho a primeira edição dos Ensaios. Uma aquisição saborosa. O que traz aqui?†“Venho trazer-lhe um presente. Um livro de um amigo. Ele é uma voz Ãntegra e original da literatura atual.†“Do que fala ele?†“Fala do amor, das formas que assume em geral; da famÃlia, das montagens e remontagens sucessivas pelas quais ela passa.†“Sim, sim, como ele se chama?†“É o ramo português da famÃlia ‘ Ponce de Leon’: André de Leones.†“Será mesmo?†“Nem sei. Mas a imagem de alguém procurando a fonte da juventude é bem sugestiva para mim.†Riram.
Descobriram amigos e professores em comum. Freqüentaram a mesma escola. Confessou que lia durante a aula. Conversaram sobre a premiação de escritores.
“O senhor conhece Le Clézio, o premiado com o Nobel desse ano?†“Não, não o conheço.†“Você o conhece?†“Li alguma coisa dele.†“E que tal?†“Eu, particularmente gosto. Ele fala, defende e mostra o ponto de vista dos excluÃdos. Uma literatura que estende a mão para o diálogo. Ilustra as diferenças. E justamente por esse motivo foi alvo de muitas crÃticas. Peixe Dourado conta a viagem de uma órfã pelo norte da Ãfrica e Europa. Mistura as culturas diferentes. Quarentena não é uma leitura fácil, com tantas informações, exige um grande conhecimento do seu leitor, ou – no mÃnimo - curiosidade. Vai de Rimbaud à Botânica; das Ilhas MaurÃcio à Plate, Gabriel, Pigeon House Rock, Gunner’s Quoin e Coin de Mire; do AlmÃscar ao massacre de Fourmies; de Aldebarã (Rohini) aos cães famintos de Aden; do Heliotrópio à rebelião dos Sepoys. Uma história narrada em várias camadas de tempo. Foi uma premiação justa.â€
- “Meu amigo, hoje em dia os leitores querem sentimentos e emoçõesâ€, pontuou.
Tomaram seu segundo café, agora com leite.
“Eu tive muita sorte. Minha mulher adorava ler. Ela foi um grande incentivo para formar a minha biblioteca. Às vezes, tÃnhamos problemas de dinheiro ao final do mês e ela sempre me apoiou. Iniciei minha coleção em vinte e três. São oitenta anos de leitura. Todas as dependências da casa estão tomadas, e quando terminou o espaço, aluguei um apartamento aqui na frente.â€
Eles saÃram para ver a primeira edição dos Ensaios de Montaigne; o manuscrito do Grande Sertão: Veredas; a primeira poesia concreta (impressa em forma de cálice) publicada em livro, na época de Gutenberg, e uma série de outras raridades. Ele apanha todas as obras, de memória, no lugar exato da estante. Abre o livro exatamente na página objeto da conversa.
Sentam-se.
“Agora incentivo o Mário a ler. Ele me conduz para todos meus compromissos e, não raro, fica horas me esperando. Dei-lhe de presente Memórias Póstumas.†“E então, ele apreciou?†“Creio que não. Ele começou e não terminou.†“E se o senhor começasse pelas Memórias de um Sargento de MilÃcias, não teria mais sucesso?†“É verdade, não havia pensado nisso. Ele é mais divertido, mais próximo do nosso tempo. Farei isso.â€
A conversa segue adiante até se extinguir. O visitante sai é acompanhado até a porta. O homem volta, senta, toca a campainha. Aparece uma moça e inicia a leitura. Pela sexta vez lê Proust.
Acompanho a cena. Perco-me em recordações. Vivo num paraÃso. Um lugar calmo, cercado de todos os pensamentos deixados por escrito pelos homens. Ouvi uma boa parte deles. Gosto de ouvir o Quixote. Também ouço as histórias de outros, jamais as experimentarei. Experimentar é diferente de ver, é saber sem compreender. Mas estou livre de todas as infâmias que ouço existirem fora daqui. Apesar de fixa, a minha curiosidade tornou-me nômade.
Viajei por todos os continentes, conheci quase todas as nacionalidades, numa viagem a roda da minha sala. Essa viagem foi pouco aleatória, foi planejada e seguiu uma ordem. Escapou de mim o imprevisto. A conversa de agora há pouco, por exemplo. Ela foi mais vÃvida, mais tocante e possuidora de uma tinta diferente da que impregna a folha branca.
Há dúvidas que não consegui resolver. Buscas que resultaram infrutÃferas. Saboreio um grande quebra cabeças, vejo cenas esparsas, compreensÃveis em si mesmas. Entretanto, os vazios existentes, nublam o plano geral. Existem muitas perguntas sem respostas. Talvez as mais importantes. Qual o valor das coisas? Qual o valor das idéias?
As coisas são fascinantes. Todas tendem a permanecer. A permanência do homem se dá pela destruição das coisas. O fascÃnio do destruir, de apagar, do recomeçar.
Na coleção que habito encontrei a história de um prÃncipe chinês contemporâneo de AnÃbal. Ele destruiu todas as bibliotecas existentes em seu reino. Livros acumulados desde há três mil anos. Raciocinou iniciar uma nova era e se denominou o Primeiro Imperador. Intentava iniciar uma dinastia infinita e fazer de todo aniquilador de bibliotecas um discÃpulo seu. A história não soube dizer qual sentimento assaltou o comandante cartaginês. Sabemos apenas que hesitou na destruição da capital do Império. Foi destruÃdo por Roma.
A queima de livros é uma destruição muito particular. Mais desilusão que engenho. Auto-de-fé. Acompanhei a narrativa de um professor que viveu encerrado entre seus livros. Apenas recebia a luz do sol por uma clarabóia no teto. Acreditava que todos os espaços, deveriam ser utilizados para estantes. Considerava a leitura uma carÃcia. Uma forma de educação sentimental. Todas as pessoas letradas seriam bem educadas. Cansado de enfrentar os problemas práticos, resolveu casar-se. O casamento abriu a caixa de Pandora. Conheceu um lado desconhecido da vida e o descompasso entre a realidade literária e a prática. Resolveu imolar-se juntamente com sua paixão.
Por que o homem do Povo do Livro não queima a sua biblioteca?