Manuela Fonseca
Membro da Casa
Offline
Sexo:
Mensagens: 412 Convidados: 0
A poesia é uma disciplina da alma
|
|
« em: Outubro 13, 2007, 22:38:54 » |
|
Eram quase cinco horas da madrugada. Ela dormia e seus filhos também. A chave rodou na porta, os passos ameaçavam a entrada no quarto e ela foi arrancada da cama, com violência. Arrastada por um braço até à cozinha, encostou-se à parede aquecendo a comida no fogão, que deveria ter sido do jantar. Já nada tinha a perder e muito menos a ganhar. A colher de pau dava voltas no velho tacho de alumÃnio, enquanto à mesa a violência, virada do avesso, esperava batendo com o garfo no prato num ruÃdo sinistro, ameaçador. Mas ela já nada tinha a perder e a comida quase queimava… Depois de encher o apetite, deitou-se, achando que tinha cumprido a sua obrigação de homem a sério! Ela olhou para as chaves do BMW, num convite gritante para lhes pegar e dali sair. Os seus filhos prendiam a sua vontade. O mais velho acordou: - Mãe, eu vou contigo! Lá fora, a chuva era miudinha e o frio apertava. O carro arrancou do seu lugar, mal estacionado na bebedeira azul do idiota. Ela conduziu devagar, porque vagar não lhe faltava… Foi dando voltas para não adormecer e não faltar ao emprego à s sete horas da manhã. As lágrimas mal disfarçadas nunca passaram despercebidas ao seu filho. A poucos metros de casa: - Mãe, deixa-me conduzir agora…
Ela passou para “o lugar do mortoâ€. Numa curva que convidava ao desafio mortal, ela ouve a voz do seu menino: - Mãe, vou mostrar-te como se faz esta curva! Diante dos olhos dela, o alcatrão serpenteou, o carro chiou, ela desmaiou antes de ser projectada, violentamente, contra o vidro da frente. Entrou num túnel escuro, que mais não era do que uma gigantesca roda de camião. Quando recuperou os sentidos, sentiu a vista direita molhada, como um botão de rosa vermelho, aberto. Sem forças, levou a mão ao rosto. Pessoas ali espalhadas à sua volta, olhares horrorizados: - Não faça isso, a ambulância já vem a caminho! Quando olhou para o seu braço, reparou que a manga da camisola estava ensopada em sangue. Foi aà que se apercebeu do acidente. Afinal, ia chegar atrasada ao emprego! A ambulância chegou. O seu filho estava desesperado e ela, desesperada por ele. - Como se chama? - Onde vive? - Que idade tem? Esteve seis horas na sala de oftalmologia. Foram quarenta e dois pontos à volta da vista e testa. Andaram com ela numa maca, de um lado para o outro, antes de entrar na sala de tratamentos. Ela sentiu frio, pediu um cobertor e pensou que ia morrer… Após seis horas, voltou para casa com a cabeça envolta em gazes brancas. Não chegou atrasada ao emprego… Apenas o perdeu…
Após trinta dias, quando lhe retiraram as gazes brancas, ouviu de si própria um grito dilacerante, em frente ao espelho. Onde estavam as suas pestanas? Onde estava a sua sobrancelha? Que aspecto era aquele que tinha transformado o seu rosto em qualquer coisa horripilante?
Hoje, sempre que passa naquele lugar sente suores frios a ensoparem-lhe o corpo…
Manuela Fonseca
|