vaza pinheiro
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« em: Março 14, 2009, 01:08:47 » |
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A D. Alzira era uma mulher de comando. Nas suas funções de educadora, em casa e na escola, cortava a direito. Com o seu metro e setenta de altura, corpo de atleta e cara ligeiramente rosada, metia medo aos putos que lhe passavam pelas mãos. Por minha causa – dizia ela – não serão uns mariquinhas quando forem homens e a pátria os chamar! - Até para mim era exigente: mais parecia um sargento americano em dia de instrução – precisava o Jovial, levemente enternecido. Sem o saber, preparava os rapazinhos que um dia veriam o futuro à s avessas, mercê de uma guerra sem sentido. O seu menino seria um deles: cresceria a direito pelas subtilezas da vida, sem atropelos de gente nem moléstias de consciência. Em quase tudo tinha razão, mas na mente juvenil a severidade da sua vÃrgulas – a alcunha da quarta classe – não era coisa boa. Se em casa havia mimos e carinho, na escola não faltavam as caroladas do ponteiro e as palmatoadas nas mãos pequenas de quem se esquecia de colocar a vÃrgula no lugar certo do ditado. Daà que o filhote da professora desenvolvesse um gosto muito especial pelas maroteiras, ao longo dos primeiros anos. Ainda não aprendera a máxima de que, na maioria dos casos, pagava o justo pelo pecador quando a balança das decisões era colocada em cima dos acontecimentos. Assunto que não vinha ao caso na sua idade, verdade se diga! Do mesmo jeito que os vencedores das histórias de acontecer, o desejado marinheiro das águas turbulentas de cinco oceanos - que a vÃrgulas queria que fosse, mas ele não, - saiu da barriga da mãe a berrar pela vida, nessa aldeia sem honras de cagadela de mosca no mapa da civilização portuguesa. Sem luz eléctrica ou rua alcatroada, o caminho de casa para a escola e da escola para casa, fora talhado a modos de alcantil não muito escarpado nem pedregoso, mesmo assim difÃcil de vencer por quem se ajoujasse ao peso dos trabalhos do campo ou à sacola dos livros e da magra refeição. Apesar de tudo, a sua aldeia era um verdadeiro hino à liberdade, sobretudo para quem pudesse esquecer os meses de frio Inverno e os outros, caldeiras de inferno. E a paisagem que a natureza plantara a seus pés? Ele era a manta verde e rendilhada do horizonte até onde o olhar humano chegava! Ele era a mancha do arvoredo cerrado, de onde o povo mais pobre esgaravatava a lareira acesa das noites de taró inclemente! Ele era o convite dos dias de Verão a uma tarde de sonolência domingueira, por entre descantes e verdasco à sombra de uma latada! Já no final da Instrução Primária, o Jovial extravasou o desejo que há muito acalentava de um dia pôr a mãe à prova. Se bem o pensou melhor o fez e logo sobre o preferido da mãe-professora, nada mais, nada menos, de que o aluno mais brilhante da turma. - O caso, de muito labéu entre as comadres da aldeia, passou-se assim – começou a explicar o Jovial. No caminho para a escola fui colher amoras bravas e não consegui livrar-me do entrançado das silvas. Puxei, puxei, e o que consegui foi um rasgão nos fundilhos dos calções, com metade do rabiosque debruçado nos caixilhos de pano a espreitar envergonhado. Até à entrada na aula não liguei à risada dos outros, mas tudo se alterou com a chegada do Anibalzinho pela mão da criadita fardada e muito particularmente quando ele próprio olhou para mim em ar de triunfo. - Confesso que foi uma patifaria da minha parte – particularizou o Jovial – mas o gozo de ouvir o som cadenciado e musical das doze reguadas, nas mãos mimosas do pequeno traste, foi a vingança perfeita. Ele mereceu-as e foi o alvo da minha dupla desforra, se calhar, não tanto pelo que era, mas pelo que viria a ser. Tudo me irritava nele: o esganiço da voz, o lacinho à gato, o risco ao meio e o cheiro da brilhantina enjoativa. Ainda hoje lhe vejo os olhos arregalados ao ver a professora Alzira a abrir-lhe a pasta de cabedal e sacar do seu interior um cartucho de papel pardo cheio de bosta de burro, com um papelinho colado pelo lado de fora onde se podiam ler as seguintes garatujas: este cartucho de cocó é uma oferta do papá para a burra da professora. Valeu ao êxito da patifaria a falta de domÃnio da mãe-professora que explodiu sem pensar duas vezes: - Ó menino porquinho, filho de uma pocilga, que brincadeira é esta? Não o julgava com maneiras tão desavergonhadas! - Não fui eu senhora D. Alzira, juro por deus! - Eles é que cheiram mal e não eu – continuava a lamentar-se o Anibalzinho, cada vez mais infeliz e a bater com as migalhas dos pés nas tábuas do chão. Ele bem implorava, mas a professora, com o bilhete anónimo na mão, não encontrava a saÃda salvadora para o perdão que no fundo desejava: - Mas, menino AnÃbal, esta letra é sua ou não é! - Parece senhora D. Alzira, mas juro por... - Cale-se! Não blasfeme e leia alto para todos ouvirem. - Este cartucho de cocó... - Chega, chega! Doze reguadas e nem um pio! A imitação quase perfeita da letrinha desenhada do queixinhas de risco ao meio cantava vitória, sem que a mãe-professora descobrisse o nome do autor.
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