NunoMiguelLopes
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Não vou gostar nada do dia de hoje, pois não?
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« em: Outubro 20, 2009, 13:56:25 » |
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Bliss pairava a um palmo da carpete quadriculada do quarto de casal com o seu longo cabelo pendurado atrás de si como um manto negro ondulando agitado à mercê da maré dos seus pensamentos carregados. Worms voltara a sentar-se na única cadeira da divisão, mudando de posição para aliviar as ferroadas das bocas que tinham aberto caminho à dentada nas suas nádegas. Os dois observavam de perspectivas diferentes Pace atarefar-se de volta das engrenagens do braço do seu pai. Bliss queria que ele se despachasse e fossem à procura da tal miúda que de tempos a tempos soltava um gemido torturado que se infiltrava até ao interior do quarto vindo de todos os lados e fazia os cabelos dela contorcerem-se e libertarem faÃscas crepitosas de estática. Por seu lado, a múmia embalava a fé de que Pace mudasse de ideias quanto à tentativa de salvação da jovem hóspede que Worms vira ser arrastada para dentro do edifÃcio pelo Sheriff. Aquele era o Motel da Escuridão. Deixavam, todos os que ali entravam, voluntariamente ou não, a esperança lá fora. Não havia salvação naquele lugar maldito.
- Pace… - Bliss não conteve a impaciência após mais um lamento chegar até eles. – Estou farta de aqui estar. Se vamos fazer isto, vamos lá fazer isto duma vez.
O homem do chapéu de abas nada disse. Continuou a escolher fragmentos duma máquina que talvez nunca mais voltasse a trabalhar. Bliss chegou-se perto dele e pôs a mão na armação enferrujada da cabeceira da cama que começou a derreter sob o seu toque, pingando metal liquefeito para as almofadas carunchosas. Pace não reagiu. Bliss, frustrada, atirou uma mão cheia de metal derretido contra a parede do outro lado da cama. Gotas em ebulição atingiram como metralha o papel de parede e os cortinados, abrindo novos buracos em ambos os alvos. Cheirava a coisas queimadas no quarto. O toque de Bliss era sempre mais destrutivo quando ela se zangava.
- O meu nome está naquele livro ratado porque pensei que querias ajudar a miúda – disse ela, com o clamor a crescer-lhe na boca. – Isto é ajudar? Aqui parados a ouvi-los matá-la um bocadinho de cada vez? Quantos bocadinhos lhe restam? Quanto tempo achas que a desgraçada ainda tem, Pace?
- Ela terá de esperar o tempo que for preciso – respondeu Pace, sem aviso. Falava mais para si, como era seu costume, numa tonalidade baixa. Apesar do que acabara de dizer ter surpreendido Bliss pela indiferença implÃcita nas palavras, o tom da sua voz era o mesmo de sempre. Distante e calmo. – Já lá vamos.
- Já lá vamos – ecoou Bliss, falando muito perto do rosto dele. O hálito dela tinha o odor eléctrico duma trovoada, embora Pace tivesse a certeza de que Bliss nunca vira uma trovoada. - O que aconteceu com “aqueles que estiverem vivos, nós matamos, os que estiverem mortos voltamos a matar†do discurso que fizeste há pouco? Hã, Pace? Este tempo todo pelo escuro do caminho, será que andei a seguir um homem egoÃsta em vez do homem bom que julguei que tu eras? Que chora por um braço mecânico que nunca me explicaste para que servia e deixa-se ficar parado enquanto matam uma miúda no piso de cima?
- Isto é importante – murmurou ele, indicando as peças soltas que ainda estavam dispostas na colcha da cama de casal. Pegou numa, muito pequenina e mostrou-a a ela. – Vês, Bliss? Importante.
- Para ti – disse Bliss. Nada significava para ela. Apenas um estilhaço metálico.
A mulher das correntes de ouro estava tentada a agarrar nas peças que o companheiro ainda não guardara nos bolsos, destruindo-as, apressando-o a regressar ao seu modo mais activo e incansável e de melhor distinção das prioridades, o mesmo que o fizera entrar no Motel da Escuridão, com Bliss a reboque, porque algures no seu interior tinha escutado o pedido de ajuda de alguém. Bliss receou que o ambiente do Motel estivesse a exercer a sua influência corruptora sobre Pace. Ela própria, desde que entrara atrás dele, desde que assinara o seu nome no livro de Dolmen, sentia a estranheza do lugar tentar agir sobre si de formas que ainda não compreendera muito bem. Percebia que se estava a habituar à quele quarto, por exemplo. A sua estabilidade dimensional era um alÃvio depois de terem conhecido o lobbie, o elevador e o corredor lá fora, sempre apertando-se, dobrando-se, deslocando-se à volta deles. O quarto dava-lhe uma sensação de segurança e aos poucos roubava-lhe a vontade de deixá-lo. Havia qualquer coisa naquele lugar. Ou, revendo essa conclusão, havia uma mirÃade de quaisquer coisas no Motel da Escuridão. Pressentia-as à sua volta, todas a tentarem convencê-la a passar ali a noite. O discurso não era diferente do que o porteiro debitara na sua pequena voz de criança birrenta antes de começar o tiroteio. Se o aliciamento sobrenatural conseguia afectar Bliss, Pace teria forçosamente de ser vulnerável também. Afinal, eles tinham entrado no Motel, mesmo depois de mortos o porteiro e o Sheriff. AtraÃdos pelos gritos de uma voz aflita, algures no seu interior quando poderiam ter seguido o caminho. Colocado o nome de ambos no livro de registo, um acto que Worms garantia a toda a prova ser vinculativo. Quem assinava o livro de Dolmen não voltava a sair do Motel. Ainda bem que Bliss tomara as suas precauções quanto a isso, mas o facto de estar a deixar-se enfeitiçar pela tranquilidade do quarto não lhe dava grande margem de confiança. Os gritos da miúda, fosse a desgraçada quem fosse, começavam a incomodá-la, mas isso mais porque perturbavam a calma do quarto do por lhe transmitirem alguma sensação de urgência no objectivo de a salvarem.
- Sei o que estás a pensar – disse Pace. Desta vez dirigiu-lhe um sorriso. – Também o sinto a tentar influenciar-me. Não vai ter sorte nenhuma. Não é isso.
- O que é, então? – Retorquiu Bliss.
- Se pensares no teu passado, até que ponto consegues recuar? – Pace colocou a questão sem a olhar, atirando algumas peças para o monte das que não tinham futuro. Já era um monte considerável, cada uma delas de muito improvável substituição. Bliss manteve-se silenciosa perante a pergunta. – Worms? Até onde consegue recuar nas suas memórias?
A múmia deu um ligeiro salto da cadeira, arrancado subitamente ao abraço carinhoso do conformismo que ele, ao contrário dos novos hóspedes, já havia aceite. Deixara-se ficar no quarto como se fizesse parte da mobÃlia, mais para poder demorar-se a olhar com o seu único olho as curvas nuas de Bliss mas também porque não estava certo que Pace o deixasse regressar ao seu quarto. Na verdade, não podia dizer com toda a certeza porque continuava na presença deles. Nem responder com precisão à pergunta do homem alto.
- Bom… - disse ele. – Eu…
- Os rostos dos seus pais, a casa onde nasceu, o sÃtio de onde veio, como eram as pessoas por lá, quantos anos tem, podia continuar a noite toda a fazer-lhe perguntas como esta, Worms, e não me saberia responder à maioria. – Pace suspirou tristemente e largou outras duas peças no monte das perdidas. – O seu nome, por exemplo. Worms. Quem lhe deu esse nome? Os seus pais?
- Hmm… - Worms levou uma mão enfaixada ao rosto embrulhado. Boa pergunta. – Acho que não…
- É um nome que apanhou pelo caminho. Se formos ao lobbie espreitar o livro de Dolmen, lá estará, numa página qualquer, “Worms†escrito na sua caligrafia, certo? – Pace acelerava o processo de selecção. Quase todos os fragmentos do braço postiço que sobravam sobre a colcha eram irrecuperáveis. – Worms. Se eu o olhasse pela primeira vez, vendo todas essas ligaduras sujas a cobrir o seu corpo eu diria que “Worms†é um nome apropriado, porque o que quer que seja que esteja a sangrar do outro lado dos trapos, deve estar infectado. Horrivelmente infectado, com vermes contorcendo-se debaixo das ligaduras. Sou Pace, e caminho e caminho e caminho. Ela é Bliss e homens morrem felizes nos seus braços.
- Não estou a perceber, Pace. – Bliss já sentia saudades do silêncio do companheiro. Não estava a gostar do rumo da conversa. O que o passado tinha de bom era que se perdia na distância dos passos dados no caminho. Ia ficando para trás, indistinto. No caso dela, isso era uma coisa boa. Era bom esquecer.
- Sei que pensas que sei coisas – disse-lhe Pace. Mais uma engrenagem perdida. – E tens razão, eu sei coisas. Muitas, mesmo. Posso contar-te umas quantas, se quiseres. – Um novo queixume atormentado chegou até eles pelas fendas do papel de parede verde. Pace desviou os olhos para o tecto de estuque escalvado enquanto o grito se susteve no ar e só quando o eco desconsolado do mesmo se dissipou, encarou a companheira. – Ela pode esperar. Não vai a lado nenhum.
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