NunoMiguelLopes
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Não vou gostar nada do dia de hoje, pois não?
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« em: Outubro 25, 2009, 22:17:52 » |
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O isolamento da propriedade dos pais, que Pace não saberia dizer onde ficava e mesmo que soubesse, de pouco lhe valeria perante a geografia alterosa e em constante mutação do novo mundo em que agora viviam, serviu para os proteger da loucura que explodia nas cidades. Sendo uma propriedade rural com vastos campos de cultivo, os Pace tinham mantimentos para bastante tempo. A água que provinha dos muitos furos espalhados pelo terreno continuava a ser bebÃvel e a tecnologia steampunk do pai de Pace fornecia a energia eléctrica mesmo depois das centrais eléctricas terem deixado de funcionar. Pace não conseguia dizer quanto tempo passou isolado com o pai, à espera que a mãe regressasse. O televisor apenas dava estática onde se desenhavam rostos e vultos deformados que gritavam gritos mudos e tentavam por todos os meios sair do ecrã. Quando a cabeça duma criatura parecida com um lobo de pêlo vermelho conseguiu emergir do mundo de estática onde estava presa para começar a rosnar aos Pace na sala de estar, o pai usou o botão on/off do comando da televisão pela última vez. O aparelho desligou-se e a criatura que quase saltara cá para fora foi decapitada. A sua cabeça caiu no tapete vermelho, começando de imediato a decompor-se com um leve zunido de moscardo. Ficou a cheirar mal na sala durante muito tempo, mesmo depois do pai ter levado dali o tapete, e a televisão.
Deve ter sido pouco depois disso que o pai desligou os telefones e desmontou os aparelhos de rádio, esmagando os componentes com uma marreta no pátio das traseiras. Dizia que viviam neles vozes que se dirigiam a si, pessoalmente, falando-lhe em lÃnguas que não existiam. Pace receou que o pai estivesse a enlouquecer, porque ele não ouvia nada, por muito que tentasse, nos telefones ou nos rádios. O tempo passou nos seus termos inegociáveis e, desde que a noite se despenhara sobre a Humanidade, imprevisÃveis. As telecomunicações deixaram de ser a única forma do Estranho que tocara o mundo poder infiltrar-se na vida dos Pace. À noite, embora fosse sempre de noite os relógios em casa ainda sabiam distinguir as horas do dia das horas da noite e era por essas que Pace e o pai se regiam, observavam ao abrigo de portas e janelas trancadas figuras desorientadas deambular pelos campos que a falta da luz do sol reduzira a uma aridez desoladora. Na sua grande maioria eram humanas, apenas o aspecto estrambólico as diferenciava da normalidade, mas o mesmo poderia ter sido dito em qualquer altura antes do fim dos dias sobre a casa dos Pace, ou o próprio pai de Pace. Pessoas, que não eram dali, nem sequer de longe dali. Pace habituou-se ao pai chamar-lhes forasteiros.
Quase nenhum se demorava. Passavam ao largo da casa, seguindo o seu caminho numa passada pouco firme. Alguns atacavam o celeiro onde o pai de Pace armazenava os sacos de milho e outros mantimentos, que em breve se viram obrigados a transferir para a ampla cave da casa no intuito de evitar os saques. O barracão da oficina do pai também foi trancado, embora o pai o visitasse regularmente para fazer a manutenção das máquinas a vapor que davam a luz e o aquecimento à casa. Sempre com Pace de atalaia, o pai transpunha os cem metros entre o barracão e a casa quando o caminho se encontrava livre de forasteiros, e regressava o mais depressa que podia. Às vezes, o pai demorava-se e Pace não agradava nada aqueles momentos em que ficava sozinho em casa. A visibilidade também variava, quase sempre para pior, e o rapaz receava que não demorasse muito para que deixasse de ser possÃvel ver dum edifÃcio para o outro.
Conforme a noite se adensava e o tecto de nuvens descia tão baixo que os Pace o ouviam roçar-se no telhado do sótão, os forasteiros começaram a surgir como se viessem preparados para uma grande caminhada. Era comum vê-los passar com mochilas à s costas, sozinhos ou aos pares, muitas vezes em grupos, num ritmo mais acelerado e determinado, olhos sempre atentos. Pace podia jurar que alguns dos que caminhavam eram seus vizinhos. Reconhecia-os como sendo famÃlias que viviam em quintas em redor da propriedade dos Pace e que por alguma razão tinham decidido também eles fazerem-se ao caminho. Mas talvez fosse só impressão sua. Talvez fosse só a sua vontade de querer identificar uma réstia de familiaridade num mundo mudado.
Depois, havia aqueles forasteiros que não eram humanos. As criaturas nocturnas, como o quase-lobo na televisão dos Pace. Algumas não tinham pernas, outras braços, outras não pareciam virem providas de uma cabeça, ou de olhos. Nem todas caminhavam direitas, ou de todo, através do caminho empedrado que trilhava o pátio da frente da casa. Algumas rolavam, saltavam, voavam baixinho, flutuavam como fantasmas, desapareciam à frente dos olhos pasmados dos Pace para surgirem uma vintena de passos à frente, deslizavam sobre as barrigas como serpentes, ou arrastavam-se em membros imperfeitos e incapazes de dar verticalidade a corpos descomunais. Algumas vinham a cavalo, outras deslocavam-se em máquinas rodadas ou de lagartas que Pace, o pai, daria tudo para poder desmontar e descobrir como trabalhavam. Pareciam, estas criaturas nocturnas, saÃdas de livros, de filmes ou de sonhos e pesadelos. Era impossÃvel dizer, além dessas conjecturas, de onde vinham, como tinham ali chegado ou para onde iam. Seguiam o mesmo caminho que os humanos e não se passou muito tempo, ou talvez se tivesse passado, para começarem a vê-los seguirem-no em conjunto. Humanos e criaturas da noite faziam alianças improváveis e cruzavam a propriedade dos Pace lado a lado em direcção ao horizonte. Quase nenhum deles subia os cinco degraus que serviam o alpendre da frontaria da casa para vir bater à porta. Quando isso acontecia, o pai de Pace dava graças a Deus pela colecção de armas da mulher.
A primeira vÃtima do colt type 5 que Pace trazia consigo foi uma esguia mulher humanóide. A sua pele era Ãndigo, os olhos amarelos, caminhava como um sÃmio e gritava muito alto palavras que não vinham no léxico de nenhum dialecto local. Foi a primeira criatura da noite a conseguir entrar na casa, estilhaçando o vidro duma das janelas do primeiro andar. Pace foi encontrá-la a revirar um dos quartos de hóspedes que os pais tinham nesse piso. Quando o viu, a coisa deixou cair o maxilar inferior até ao chão e a lÃngua da coisa, preta e sarapintada de pontos esverdeados, farejou o ar sem dúvida a tentar perceber se o rapaz constituÃa ameaça ou comida. Comida, decidiu, pois como um macaco de cem quilos ultrapassando o ar empoeirado do quarto pulou para o agarrar. Pace encolheu-se. O pai dele surgiu por trás com dois revólveres e esvaziou ambos os tambores na criatura. A realidade estava a sofrer alterações e já não era de fiar mas as balas ainda causavam o mesmo efeito quando confrontadas com carne. Com esse pensamento a reconfortar os seus corações em sobressalto, os dois baldearam o cadáver da coisa pela mesma janela que lhe servira de entrada e depois bloquearam-na com traves de madeira. Todas as outras janelas tiveram o mesmo destino, emadeiradas por dentro. Tinha sido um erro não o terem feito mais cedo. Equiparam igualmente as chaminés, a da cozinha e a da lareira da sala, com grades de malha mais apertada. A única forma de acessar o interior da casa ou a alucinação da noite lá fora passou a ser a porta da frente que, de qualquer forma, já havia sido reforçada com placas de metal.
Assim isolados do mundo, Pace e o pai espreitavam por entre as gretas estreitas das ripas de madeira o desfilar incessante de excentricidades do lado de fora da casa e recarregavam as pistolas e as carabinas sempre que se viam obrigados a usar as armas para defenderem aquele pequeno reduto de sanidade que era só deles. Foi à custa desses forasteiros temerários e dessas criaturas nocturnas mais afoitas abatidas sempre que se aproximavam além do que era razoável da porta de casa que Pace desenvolveu o seu apurado assesto.
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