Goreti Dias
|
|
« em: Dezembro 03, 2012, 21:17:50 » |
|
A neve pinta de branco as planÃcies e as montanhas. Os campos de erva tenra deram lugar a um manto fofo onde as crianças brincam jogando pedaços do que parece ser algodão doce uns aos outros. Fazem bonecos de neve com cenouras retiradas do alguidar que repousa na cozinha à espera de entrarem na panela com as batatas, as couves e o bacalhau. - João, porque será que eu não gosto muito de bacalhau e hoje apetece-me comer um bom pedaço?- pergunta a Margarida, entre correrias. - Pois… será porque é véspera de Natal? Continuam as brincadeiras. Um gorro repousa no cocuruto do boneco, um cachecol envolve-lhe o pescoço suavemente. Riem a bandeiras despregadas quando o vêem sem olhos e boca: - Ó João, com que fazemos os olhos e a boca? - Não sei… duas batatas para os olhos? Outra para a boca? Voltam à cozinha, correndo pelo pátio e assustando as galinhas que se recolheram, friorentas, na capoeira. Até os coelhos, medrosos, espreitam a algazarra. Terminado o boneco, aproxima-se já a noite. O sol que espreitou durante o dia, já desapareceu no alto das montanhas. O frio aumenta à medida que o vento sopra cada vez mais forte. Numa caverna abrigada na encosta, um focinho branco confunde-se com a neve que a rodeia. O bafo morno faz caracóis no ar gélido. Gemidos fracos ouvem-se ao fundo do esconderijo. Uma e outra vez. Uma e mais outra, sempre, mas cada vez mais débeis. A loba esfaimada cheira o ar em seu redor, trémula e ansiosa. Não come há muitos dias e quase não tem leite para amamentar as suas crias. Um olhar feroz planta-se-lhe no focinho. Uma tenacidade felinamente perigosa arroja-a colina abaixo. A sua fome e a certeza da fome dos seus filhos impelem os seus passos a caminho do povoado, da planÃcie onde espera encontrar a comida que escasseia nos bosques despidos da montanha coberta de branco. Todos os animais se esconderam nas tocas, nada bole à superfÃcie. A fome aperta. Nunca se aventurou até à povoação. Mas há sempre uma primeira vez. A noite chega com seu manto negro, mas o seu pelo branco reluz mais do que a lua e as estrelas. Na atmosfera, paira o cheiro de rabanadas, das filhós e sopas secas, da aletria e arroz doce. Mas isso não lhe importa. Tão pouco o bacalhau cozido com as batatas que os humanos veneram nesta noite. Segue no rasto de outros cheiros. Segue sempre… Atravessa um pátio, a algazarra das crianças assusta-a, mas não pode parar. As suas crias esperam-na, cheias de fome. Apura o cheiro, dá mais uns passos. As galinhas desatam num cacarejo ensurdecedor. - João, espreita aà no pátio porque fazem tanto barulho as galinhas. Não posso deixar agora o fogão e o teu pai está no banho – grita a mãe da cozinha João, um pouco temeroso acerca-se da porta. Entreabre-a e vê uma silhueta mais branca que a neve, destacando-se do branco do chão. - Mas é um lobo! – pensa com ele mesmo. Um focinho volta-se na sua direcção, uns olhos tristes, pedindo compaixão. João continua pregado ao chão sem dizer uma palavra. Não se mexe, não fala… A loba acerca-se da capoeira, passa à coelheira, força a rede que a separa dos coelhos e arrebata o mais gordo de todos. O que estava destinado ao almoço de Natal do dia seguinte. Luzidio e pesado… Volta os olhos para o rapaz que continua a observar a cena, incapaz de abrir a boca e chamar por ajuda. João volta a fechar a porta: - Não vejo nada, mãe… E pensa para si mesmo: - A minha mãe arranja outra comida, a loba decerto não tinha o que comer, devia ter fome… deixá-la! Também é Natal para ela. E, quem sabe, para os seus filhinhos… A minha mãe também era capaz de fazer o mesmo para me dar de comer! Correu a abraçar a mãe: - Amo-te muito minha mãe! Feliz Natal! - Eu também te amo muito, meu amor maior. Feliz Natal!
|