Nação Valente
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« em: Abril 03, 2024, 19:27:07 » |
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IV - Inconfidências ao almoço
Continuei a abrir a correspondência. Entre contas para pagar havia outra carta. Numa curta missiva li numa letra bem desenhada: Senhor detective JotaCorreia, falei consigo ontem pelo telefone. Hoje, como prometido, envio-lhe o material relacionado com a investigação que quero que faça. Veja-o. Se me resolver o caso, para além dos seus honorários, dou-lhe um brinde extra. Sei que fez parte da brigada que investigou o chamado caso do “estripador de Lisboa”. O caso já prescreveu, mas eu possuo informações que lhe podem interessar, apesar da prescrição. Um bom polícia nunca fica satisfeito quando falha uma investigação. Voltarei a dar instruções. Sua servidora, Gata dos Telhados Olhei para Rosalinda e pareceu-me ver-lhe uma expressão de tristeza no rosto. Notei o corpo contraído, as pernas juntas, sem aquele movimento de as abrir e fechar que fazia para se refrescar, mesmo quando não usava lingerie, o que era sempre. Numa segunda observação, fiquei com a ideia que ela tinha a cara um pouco inchada. - Que se passa Rosalinda? Parece um pouco estranha?- perguntei. - Impressão sua detetive, estou bem. - Antes assim. Mas continuo a achá-la esquisita, tal como esta carta de uma cliente não identificada, que me traz à memória um caso em que participei e onde a PJ andou à nora, sem encontrar provas sobre o assassínio de cinco prostitutas. Porque vem este assunto à baila vinte anos depois? A quem interessa desenterrar um crime prescrito? E porque quer meter ao barulho um polícia reciclado para tratar de traições conjugais e divórcios? - Ainda bem que chegam casos novos - disse Rosalinda, procurando afastar a conversa sobre si. Nos últimos tempos não temos tido trabalho por aí além. Decerto que este caso de cliente incógnita, não é nada que escape ao seu faro policial, que muito admiro. - O meu faro policial, Rosalinda, anda pelas ruas da amargura. Estou às escuras quer num caso, quer noutro. Preciso de relaxar. Prepare-me um uísque, com gelo, se faz favor. - Às suas ordens, detetive, mas sinto-me na obrigação de o avisar que o seu fígado não vai ficar agradado. Não se esqueça da cirrose. - Agradeço a preocupação, Rosalinda. Será uma exceção. E sabe porque fui premiado com a cirrose? Foi por stress profissional. Quem está de fora não faz ideia do que é a vida de um polícia. Muita pressão, muita dor de cabeça. Depois de um dia de trabalho, é preciso fazer uma pausa para esquecer. Ver um cadáver esventrado, por exemplo, não é fácil. Afinal somos humanos. Álcool ou xanax? Optei pelo primeiro. Qualquer deles dá cabo do fígado. Este caso da “Gata dos Telhados” está a deixar-me preocupado. Olhe… convido-a para almoçar comigo. Preciso desabafar. Há um restaurante simpático onde costumo ir. Acompanha-me? A taberna Popular distinguia-se pelos grelhados com sabor a fumo, existia desde 1970, quando o proprietário deixou Monção e a profissão de trolha, para se instalar em Lisboa, como cozinheiro em construção. Tinha uma clientela de baixa condição social, atraída pela razoável qualidade da comida e pelos preços simpáticos. Os próprios clientes ajudavam no serviço de mesas. Décadas passadas, a cidade tinha perdido a sua matriz desses tempos, refinara-se, tornara-se mais cosmopolita, mas a taberna Popular manteve-se fiel à sua originalidade. Optámos por umas febras de porco preto, grelhadas e acompanhadas pelo tradicional molho minhoto, segredo do cozinheiro improvisado. Um tinto de Monção ajudou-nos a soltar a língua para assuntos mais pessoais. - Este novo caso está a causar-me alguma preocupação, mas a Rosalinda é o que me apoquenta mais. Quis vir aqui para falarmos fora do ambiente do trabalho. E também porque, reencontrar-me com um lugar e um tempo em que fui feliz, me ajuda. Era jovem, despreocupado, vivia cada dia com a esperança ingénua que o seguinte seria melhor. Estava a almoçar nesta mesa quqndo fui preso pela DGS, nome da PIDE marcelista e do salazarismo tardio. Estávamos em 1973, ano que houve eleições para a Assembleia Nacional e em que, num simulacro de democracia, foi permitido aos opositores ao regime concorrer. Comunistas, socialistas, democratas sem filiação, juntaram-se numa coligação chamada CDE. Quis dar a minha contribuição e comecei a aparecer na sede de campanha, na avenida Almirante Reis. Davam-me pequenas tarefas, como por exemplo, distribuir propaganda. Um dia fomos entregar panfletos para a praça da Figueira, num grupo onde estava o poeta Ary dos Santos. Aí, apareceu a polícia política e levou-nos para a sua sede, com o poeta a gritar “levam-me preso os fascistas!”. Rosalinda escutava-me ou parecia escutar-me, embora pela sua expressão me parecesse ausente.Continuei. Fui interrogado pelo agente Cruz Carrasco que queria, à viva força, que lhe desse informações sobre dirigentes comunistas. E por mais que lhe dissesse que não tinha qualquer ligação a esse partido, não desarmava. Chegou ao ponto em que perdi as estribeiras e disse ao agente, “sou apenas um democrata que quer o país livre de uma opressão que tem que terminar". Digamos que esta afirmação obrigou o agente Carrasco a perder a compostura, e a dar-me um tabefe que me fechou um olho. Olhou-me com ar raivoso e disse-me “Cala a boca Che Guevara de pacotilha, (talvez por eu usar barba crescida). Quem livrou a pátria da bagunça em que vivia foi o senhor doutor Oliveira Salazar, grande estadista e patriota”. Depois disse-me que ia passar a noite naquele lugar, de pé, para aclarar as ideias. Estive lá algumas horas. Quando o cansaço me vencia e procurava fechar os olhos, era de novo agredido. A meio da noite o agente Carrasco foi substituído por outro polícia. Quando entrou, reconheci-o. “Devo estar com alucinações - pensei. O tipo parece-me o Óscar. Porra! O mundo, sendo grande, é pequeno”. Pausei. Bebi um gole do vinho minhoto. Esperei por uma reação da Rosalina, mas continuava em silêncio. O “anjo da guarda”- enfatizei retomando o discurso - era um meu conterrâneo, que embora fosse um pouco mais novo, tinha sido meu companheiro de escola. Há muitos anos que não o via. Era na altura agente estagiário. Também me reconheceu, apesar do olho negro, porque me disse: “Ó Júlio, por que carga de água é que estás aqui? Em que merda te meteste? Nunca te imaginei nestes assados! Sempre tão “choninhas”, tão bem comportado… Virou-se para o seu companheiro e explicou que por mim, punha as mãos no fogo, que me conhecia e à minha família desde a infância, que éramos pessoas de confiança, fiéis aos interesses da Nação. Com convicção, pareceu-me, disse que os meus pais eram pequenos proprietários rurais e que, como todos os outros, receavam que o comunismo lhe tirasse as poucas terras. E lembrou que fui combatente contra os “turras” na Guiné. “Pode deixar sair o rapaz, não faz mal a uma mosca e garanto que não tem nada a ver com comunas” -E foi graças ao Óscar, sobre quem constava na aldeia que já havia feito denúncias de conterrâneos suspeitos, que saí dali sem mais mazelas. A campanha continuou até ao ato eleitoral, mas a oposição desistiu de ir a votos, porque sabia que seriam manipulados. Apenas usou essa eleição para denunciar a natureza do regime que cairia no ano seguinte. - Nunca me interessei por política detetive - disse Rosalinda, saindo do seu silêncio - A minha vida sempre foi o trabalho. Nem me lembro de ter feito mais nada. Desde pequena que vivi com a minha mãe na Madragoa. Não sei quem é o meu pai. Fui registada como filha de pai incógnito. A minha história é daquelas que dava uma novela a puxar ao choradinho. Olhe, começou pela minha avó, abandonada pelo marido por estar amancebado com o álcool. O meu avô, que era Guarda Republicano, juntou-se com outra mulher para refazer a vida e mais tarde voltou à sua aldeia na serra algarvia. A minha avó morreu cedo e a minha mãe ficou sozinha, começando a trabalhar como criada de servir, muito jovem. Teve um namorado que se serviu dela e quando soube que estava prenha, deixou-a à sua sorte. Nunca me disse, mas não me custa acreditar que tivesse também sido abusada pelo patrão, que vivia na zona da Lapa.Com uma criança nos braços, a minha mãe alugou um quarto e começou a trabalhar como costureira numa pequena fábrica de camisas. E ainda costurava em casa para as pessoas da vizinhança, quando os bairros eram como aldeias. Como vê, não é na cidade que estão as minhas origens. A minha mãe contou-me que quando eu era criança de berço, tive tosse convulsa e que o médico a aconselhou a levar-me para um sítio com ares campestres. Lembrou-se da aldeia do seu pai e escreveu a uma prima com quem mantinha contacto, que se dispôs a receber-nos. Durante essa estada ainda ousou ir visitar o pai, reformado e com nova família constituída, apresentando-se como a filha Deolinda. Mas ele escorraçou-a com as palavras “não tenho nenhuma filha chamada Deolinda”. Ouvi, em silêncio, aquela história e no fim veio-me à memória uma lembrança de infância. Recordei-me da minha mãe ter recebido uma prima com um bebé e de os ter alojado durante umas semanas. Nessa altura, teria talvez dez a doze anos. Recordava ainda essa mãe e a filha, deitada numa alcofa onde a transportava para uma zona onde havia uns pinheiros bravos, recomendados para combater a doença da criança. Perguntei-lhe se sabia o nome do seu avô. Cheguei à conclusão que se tratava de um irmão do meu avô Baltazar. Não podia haver dúvidas. Rosalinda era a criança que recordava dentro da alcofa, muito antes de me querer oferecer flores. O mundo é mesmo pequeno, pensei com os meus botões.
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