Nação Valente
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outono
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« em: Novembro 23, 2023, 19:13:26 » |
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Guardador de Rebanhos
Diz-me como te chamas e dir-te-ei quem és. Zé, está na cara, é nome de pobre, que nem sempre de pobre diabo. Da barriga da mãe de onde saí, saíram mais sete, se a memória não me atraiçoa. Não havia recursos para nomes pomposos. O meu pai gabava-se, na venda do Zé d`Alzira, entre um copo de três e um jogo de sueca, que cada vez que tirava as botas e ficava em ceroulas, metia mais um na “fábrica” da mulher. E dizia-o com propriedade, pois recordo a mãe, ou prenha ou a parir. Da outra variante, não tenho lembrança, porque nas duas camas disponíveis, a lotação estava esgotada e alguém tinha que pernoitar no palheiro. Lembro-me, isso sim, de ver outros zés (ou marias) acabadinhos de chegar. Uma vez, por mero acaso, até vi atravessar a porta de saída, ou de entrada neste mundo, creio que a Maria dos Remédios. (ou seria a Maria da Consolação?). Foi durante a ceifa, num dia em que o estio fazia jus à sua fama. Era como se o inferno tivesse descido aquele outeiro. Lembro-me da minha mãe gritar “áuguas”.Eu larguei o molho de trigo e na minha inocência juvenil, corri a buscar a infusa onde estava a água que disfarçava a canícula. Quando cheguei já ali estava uma nova maria. O meu pai a gritar e a cortar o cordão umbilical com a foice: “Não é da infusa que precisamos mas do alforge para deitar a tua mana, grande burro”. E lá montamos a minha mãe na Lindinha, a burra cinzenta, com a Maria para o regresso a casa. Durante esse verão, pelo menos, a mãe não voltou à ceifa. Sim, que entre uma e outra parição e uma ou outra amamentação a mãe ainda ajudava nas lides do campo, quando a faina apertava. No tempo que sobrava entre guardar a vaca, duas ovelhas e uma cabra, comecei a ir à escola. Tinha que ir porque era obrigatório. Foi lá que comecei a conhecer o mundo para além do horizonte curto da aldeia. Foi lá que percebi aquele mistério da crucificação de que ouvia falar na catequese, de que Jesus tinha sido posto na cruz ao lado de dois ladrões. Ali estava, à nossa frente, a representação da cena com o crucifixo no meio dos ditos ladrões. Tão verdade como me chamar Zé. O senhor professor que era um bom católico e um grande patriota, a quem tínhamos de saudar de braço esticado, dizia-nos que aqueles dois homens de ar severo, eram o senhor Presidente da República e o senhor Presidente do Conselho. Na minha ignorância campónia, não entendia o significado daquelas palavras. Presidente só conhecia o da Junta de Freguesia. E o meu pai, sempre que ele nos visitava, murmurava entre dentes “aí vem o ladrão contar as galinhas e os ovos que elas põem, com a lengalenga dos interesses da nação”. Bate certo. Presidente igual a ladrão. Se calhar não apenas pilha galinhas, mas “pilhador” de coisas mais avantajadas, pois aqueles dois presidentes que estavam ao lado de Jesus, deviam ser chefes de quadrilha. Pensava eu na minha ingenuidade de um zé qualquer. Quando fiz exame da 4ª classe, com distinção, passei a ser moiral dos animais a tempo inteiro, que as bocas para alimentar não paravam de crescer, embora as mais velhas tenham ido servir as senhoras da cidade. A Maria dos Remédios, ou talvez a Maria da Purificação deixou-se enganar por um gandulo com promessas tolas. Apareceu em casa com uma barriga maior que o globo da escola primária. Pariu mais uma alma inocente que o pai teve que alimentar. Que havia ele de fazer? Pai é Pai. O que valeu foi que o Zé Tendeiro, já sem mercado entre as moças casadoiras, comprou o produto desvalorizado e ainda levou o brinde. Menos aborrecimento deu uma outra Maria que se deixou iludir por um maltês, que fazia parte da trupe do alcatroamento da estrada. Uma noite, saiu discreta, arrastando os sapatos, e a mãe comentou " a nossa filha vai com um qualquer. Só sei que deixou um cheiro a estrada acabada de alcatroar”. O meu pai tirou uma fumaça do cigarro de onça que tinha acabado de enrolar: “deixa-a ir mulher pela estrada que escolheu”. Para nós sempre é menos uma boca para alimentar. E estava certo. Desde esse longínquo dia em que essa Maria saiu sem se despedir, com o tipo que cheirava a alcatrão fresco, nunca mais se soube do seu paradeiro. Mas não vi grande tristeza com a sua partida, até porque pelo volume da barriga da mãe vinha mais uma alma a caminho, para ocupar o lugar deixado à mesa.
Excerto de Zé Ninguém - A minha vida não dava um romance. Disponível na Bertrand, Fnac online e na livraria Atlântico (Portugal e Brasil) em papel e ebook.
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