Nação Valente
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outono
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« em: Março 20, 2024, 16:42:39 » |
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III - O marido desaparecido A campainha da porta despertou-me das minhas divagações. Abri. Na penumbra desenhou-se a figura da minha colaboradora. Não é que Rosalinda fosse o protótipo da secretária do senhor engenheiro da metalúrgica, mas possuía as mesmas formas esbeltas, como se fosse obra de um escultor do Renascimento. Dispensava porém o excesso de maquilhagem, o que realçava a sua beleza natural. Olhei para o relógio da mesa-de-cabeceira, que registava nove horas e trinta minutos. Levantei-me e fui a abrir a porta, vestido num pijama de sono. - Bom dia detetive - disse a secretária Rosalinda.- Ainda em traje de mergulho? Desculpe se o acordei, mas costuma ser mais madrugador. Que aconteceu? Andou às gatas? - Ó Rosalinda, não sei o que me aconteceu, parece que ainda estou embrulhado num sonho. Vá pondo o expediente em ordem, enquanto tomo um duche e como uma bucha. A vida de Rosalinda, fora igual há de tantas outras filhas de um deus menor: tratar da casa e do seu homem. Nas horas restantes, continuava a vender flores na rua, tal e qual como quando me as ofereceu, num ímpeto incontrolado. A vida em comum não fugia à rotina de um casal remediado. Após um dia de trabalho jantavam e ela ficava a lavar a louça, enquanto o companheiro ia até à taberna conversar com os amigos. Quando regressava já Rosalinda estava deitada. E se lhe apetecia, como ela própria dizia “saltava-lhe para cima”. Enquanto eu tomava o primeiro almoço, Rosalinda desceu até ao átrio do prédio, para retirar a correspondência da caixa do correio. Encontrou entre diversas cartas, um envelope castanho e volumoso. Abri-o e comecei a observar as fotos que trazia no seu ventre. Tinha seguido, durante uma semana, o dia-a-dia do marido que saíra para comprar cigarros e não voltara. Um clássico! Procurei-o primeiro no local de trabalho, uma agência de seguros, situada na baixa da cidade. Recebi a informação que tinha deixado de aparecer sem ter dado qualquer justificação. Interroguei a queixosa sobre os seus hábitos, os locais que frequentava, os amigos com quem se reunia, os familiares mais próximos... De acordo com a bíblia investigatória corri seca e meca, fiz os seus roteiros habituais, falei com quem com ele convivia e nem uma ténue luz se abriu no meu espírito. De Ernesto, o desaparecido, nem sombra de dia sem sol. Normalmente, estes casos estavam ligados a traições conjugais, à existência de outra mulher e eram muito comuns. Mas este parecia-me mais complicado. Idalina, casada com Ernesto havia uma década, tinha-me dito, que o marido costumava sair às vezes, depois do jantar, para ir ao café da área da sua residência, onde bebia uma cerveja, enquanto passava os olhos pelo jornal e trocava dois dedos de conversa com um vizinho ocasional. Não tinha levado senão a roupa que tinha vestida, a carteira com os documentos e algum dinheiro para pequenas despesas. Na foto que me entregou e na descrição física que fez, aparentava ser um homem de estatura mediana, ligeiramente calvo e um pouco obeso. A minha carreira policial na PJ, onde tinha ganho experiência em diversas áreas de investigação e onde tive que lidar com crimes praticados por pessoas, que no seu comportamento sempre se tinham mostrado cidadãos exemplares, levou-me a perceber que na natureza humana as virtudes coexistiam com os pecados. O maldito pecado original nunca fora erradicado da humanidade. Para se passar de bestial a besta, bastava uma pequena fagulha. Foi assim que, sem sombra de pista nem qualquer ponta de fio por onde começar a desenrolar o novelo, decidi começar a investigar Idalina, a mulher queixosa. Rosalinda foi-a fotografando no seu dia-a-dia. Registou os seus movimentos, os locais por onde andava, as pessoas com quem convivia. Numa inversão da investigação, pensava que ao seguir o caçador talvez chegasse à caça. Enquanto observava as fotos, procurei refazer a rotina diária de Idalina. A gata que me adotara, interrompeu-me. Judite chegava sempre ao fim do dia para fazer a última refeição. Não tinha mais preocupações nem mostrava ter qualquer ideia dos meus afazeres. - Ó Judite, não sais mesmo da minha vida. Depois de observar estas fotos, digo-te uma coisa, “este mato tem cachorro”! Sei que gato não liga nada a aforismos ou outros ismos, mas mesmo assim ficas a saber que neste caso do marido desaparecido, o feitiço ainda se vira contra o feiticeiro. E para já ficamos por aqui. Vai lá comer a tua ração e bico calado. “Pois vou. E se julgas que por ser gata, me falas como se fosse uma parede, estás enganado. Os gatos têm mais sabedoria do que imaginas”.
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