Nação Valente
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outono
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« em: Julho 17, 2024, 18:52:01 » |
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– Conversa com gatas Acordei com a noite a deitar-se. Enroscada nas minhas pernas estava a gata Judite, que ali se instalara sem eu ter dado por isso. No meu horizonte estava a mesma paisagem com que adormecera. Os guindastes agora não pareciam sentinelas, mas braços de gigantes que moviam contentores como se fossem peças de lego. Outro dia ia começar. Outro dia de labuta. As interrogações ocuparam-me a mente. O que fazer com Rosalinda? Como continuar a investigação do “marido desaparecido”? Como interpretar as misteriosas comunicações da “Gata dos Telhados”? Espreguicei-me e sacudi a Judite. - Caramba Judite, tu abusas da sorte. Até me usas como cama? Deixa lá, também não tenho companhia para dormir. Não tenho nem nunca tive, a não ser ocasionalmente, como atAida, uma outra gata, quando tu ainda não o eras, nem sabias se o serias. Aquela primeira noite foi inesquecível, mas não te vou dar pormenores. Se tiveres imaginação, imagina. Outros dias e outras noites se seguiram, cada vez com mais paixão. E tive quase a cair na tentação de ficar preso na sua sedução, mas fui salvo por um “gong acidental”. O que tem que ser, é. Esse desencontro amoroso, terminou, Judite, com a mesma naturalidade com que tinha começado. Aconteceu quando a empresa em que trabalhávamos começou a ter dificuldades nas vendas. Uma crise a nível mundial causou perturbações nos mercados. Começaram os despedimentos. Antes que chegasse a minha vez, certo dia, fui ter com o chefe de zona e disse-lhe. “Senhor Figueiredo, isto está a ficar difícil, decidi apresentar a minha demissão”. O chefe Figueiredo, que até simpatizava comigo, perguntou? “Já tem outro trabalho? Não.- respondi “ “Então o que vai fazer? Vou tirar umas férias. Vai Tirar umas férias? Caramba! Como é possível? Eu trabalho há mais de vinte anos, e nunca tive férias”. Outros tempos, Judite. O que não tem que ser não é, e parti para outra, como se costuma dizer. Eu parti e a Aida ficou, com a sua vida, com o seu marido. Imagino que me estejas a perguntar, se foi doloroso. Claro que foi. Longe da vista, longe do coração. Somos viajantes de passagem, sempre a iniciar novas viagens. De tudo ficaram três coisas: A certeza de que estamos sempre a começar… A certeza de que é preciso continuar… A certeza de que podemos ser interrompidos. antes de terminar. Por isso devemos: Fazer da interrupção um caminho novo Da queda um passo de dança… Do medo uma escada… Do sonho, uma ponte… Da procura, um encontro. Esteeste poema que reflete o que quero dizer, não é da minha lavra. Não tenho unhas para tocar tão bem essa guitarra. É de um senhor que se chama Fernando Pessoa. Um solitário, dizem, com o qual me identifico, em parte, no ser e no estar.. Quase um desconhecido no seu tempo, mas hoje e sempre, imortal. Fui acordado das minhas divagações para uma gata, pela voz de Rosalinda. - Bom dia detetive. Incomodo? - Olá Rosalinda, nunca incomoda. Dormiu bem? Está pronta? Já tenho um plano de trabalho para hoje. Vou pedir-lhe para seguir a Idalina, a mulher do marido desaparecido. As fotos que tirou têm pouca qualidade. Vai ter que tirar outras e avançar um pouco mais na investigação. Mas antes vamos tomar o pequeno-almoço, na pastelaria As Sete Colinas. Continuaremos lá a nossa conversa. Na pastelaria, quase deserta, sentámo-nos num local discreto, ao fundo sala. - O habitual, detetive? - perguntou uma jovem com um largo sorriso. - Eu quero o habitual. Para esta senhora, uma tosta mista e um doce “especialidade da casa”. Ela não precisa de fazer dieta como eu. O colesterol ainda não a limita. - Muito bem, a menina vai gostar do meu bolo “alfacinha”. - Desculpe Rosalinda por ter sido parco em palavras no escritório. Receio que possa haver escutas. Já dei volta ao apartamento e ainda não encontrei nada. Mas é melhor tomar precauções. Por isso, vou dar-lhe agora os pormenores. Vamos em táxis separados para perto da habitação da Idalina. A Rosalinda vai segui-la; eu sigo as duas. O principal objetivo é ver se apanho o merlo que a fotografou a si. - Então menina Rosalinda, que diz do meu doce? - Só encontro uma palavra: divinal. Voltarei… Dirigimo-nos para junto da residência de Idalina. Esta saiu de casa às nove e trinta horas e caminhou pela avenida da Igreja em Alvalade até à estação do metro. Segui Rosalinda a uma distância segura até chegarmos à entrada do metropolitano e não notei nada de anormal. Aí, saiu debaixo das arcadas de um prédio próximo, um indivíduo com calças de ganga e blusão de pele, que caminhava na mesma direção. Disparei a minha Polaroid. Na imagem que saiu da máquina fotográfica pude ver o rosto do desconhecido, um pouco desfocado. - Diabos me levem- pensei - esta cara não me é estranha!
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