marcopintoc
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« em: Junho 05, 2008, 15:49:00 » |
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O resto da minha primeira manhã em Cusco dura a eternidade deste lago de suor frio e tremor incontrolável que encharca o lençol e leva o meu espÃrito a cavernas profundas que jamais havia percorrido. Nu, o olhar dilatado fixo no tecto e na enorme ventoinha que desta vez não é tÃmida em revelar todas as coisas do outro mundo que flutuam entre as suas pás ; na mão a garrafa mescal feita biberão de uma loucura que paro a curtos e repetitivos goles. Duas imagens alternam-se no intervalo de cada sombra que passa no tecto sujo de nicotina. A menos horrenda é a recordação da face do meu motorista e do seu esgazear insano. Todavia a memória que me contorce os intestinos, ao quase formalizar do estar borrado de medo, é a recordação da ultima visão que tive antes de o meu corpo, asfixiado no ar rarefeito da grande montanha ,ter sido devolvido à realidade suja do assento traseiro do táxi. Nem da primeira vez que me injectei o “flash†tinha sido tão grande. As primeiras visões que tivera esta manhã eram de algo maléfico mas que vivera outrora; no entanto o último momento que visionara era algo de amanhã. A lua cheia era recortada pelos pulsos trémulos ,unidos em pirâmide acima da cabeça do sacerdote que, envoltos em grossas pulseiras do mais resplandecente ouro, empunhavam um longo gume que apresentava vestÃgios de outros sangues ; à distancia escutava-se o coro composto exclusivamente por vozes masculinas que ritmava um “uhh-uhh†que gradualmente ia aumentando de cadência. O ângulo de visão que tinha de toda a cena era o da vÃtima cerimonial que iria, em breve, ser imolada a deuses dos quais nem sequer sei o nome. Senti que estava a viver a minha última hora. Agora esse sentimento repete-se com uma inevitável certeza de dia de amanhã; um abanar constante da cabeça em negação tenta que este ciclope que me atormenta se vá. O mescal faz os seus efeitos e sinto o ácido das minhas entranhas revirar caminho ,escalando-me numa náusea que sabe a caramelo calcinado. O vómito arrasta-me com cinquenta por cento de sucesso até à casa de banho. Ao regressar ao quarto, contorcido sobre o meu estômago ardente, percebi que havia sido demasiado lento e que um rasto das minhas digestões de cocainómano jazia na alcatifa cinza bocejo . Sobre a mesa de cabeceira o saquinho contendo as folhas de coca provava a realidade da minha boleia matinal . Sento-me no sofá e durante longos minutos arfo ,cada vez mais lentamente. O meu instinto combate com a minha razão pouco clara mas muito activa.Reforço a frieza do raciocÃnio com a emocionalidade nula de um corretor da bolsa que volta à sala de mercados após uma incursão revigorante aos lavabos. Depreendo que o problema é da excessiva pureza da droga e da frequência com que tenho consumido desde que aterrei na América do Sul. E do cansaço, afinal estou há vinte meses na estrada. Um “globetrotterâ€das mais refinadas formas de decadência humana. Vislumbro a vida ,tal como ela era, há quase dois anos. As filas de trânsito eternas da ponte , o carro pequeno sem ar condicionado , a licenciatura prostrada em frente aos “scripts†de um “call center†– Bom dia , tenho a honra de falar com ? – Inquiria a brutos iletrados que não conseguiam activar o serviço de “voice mail†. A engraçadinha namorada Susana , os suplementos de habitação do matutino percorridos com um dedo que rezava não se deparar com algo em conta. Um dia tudo mudara. Dois Euros . A conversa à bica da manhã sobre o “jackpot†avivara-me a atenção e , algumas horas mais tarde , sexta-feira tornou-me no incrédulo detentor de quinze milhões de euros. Contrariamente a tudo aquilo que é afirmado pelas gentes de bem não dediquei a minha fortuna a garantir o conforto dos meus nem a qualquer acto de benevolência. Simplesmente fui-me embora. Eu , um telemóvel de número novo , um passaporte e uma carteira recheada de opulento crédito global em moeda forte. A roupa que a minha mala continha cheirava a novo e as rodas do trolley rolavam silenciosas emitindo um suave cântico de adeus. Lembro-me de que quando entrei no avião que me levaria até as delÃcias opiáceas e ternas do Extremo Oriente ocorrera-me à mente o grito de libertação dos Xutos – Olá ó vida malvada – murmurei entre dentre após encomendar um generoso espirituoso que emborquei com evidente deleite. Agora não me sinto assim, este medo pode não ser nada mais que o vaticÃnio da insanidade, aquela a sério , psicose do narcótico , tenho de parar um bocado . Aqui , neste sofá , devolvo-me ao mundo dos aparentemente decentes prometendo a mim mesmo que, quando descer destas cordilheiras, vou direitinho à Suiça esconder-me e reciclar-me numa dessas clÃnicas para “rockers†famosos onde a branca é trocada por transfusões de sangue de gente limpa e aditivos quÃmicos da mais requintada indústria farmacêutica que vedam a dor aguda da ressaca e acalmam o espÃrito em suaves alucinações medicamente controladas. Mas o homem do táxi e a memória da lâmina do sacrifÃcio persistem em mim . Tenho de sair daqui. Desencanto um fato branco de chulo que espanta os males enquanto o som máximo da MTV local sacode o piso executivo do hotel com as batidas das pistas de Londres. Antes de sair para o exterior contemplo o espelho na arrogância que reafirmei inclinado sobre o pequeno espelho – Estás a ficar maluquinho – desafio as minhas pálpebras arroxeadas e as minhas pupilas vidradas e assustadas. Alguns minutos mais tarde, oculto em lentes negras , embrenho-me no movimento das pessoas de vestes coloridas que percorrem as ruas da cidade. Viro várias vezes a cabeça para trás para me assegurar que nada nem ninguém vêm no meu encalço. O cheiro das cozinhas a céu aberto recorda-me do meu jejum e sento-me ao balcão de um destes bares de rua . Acredito pelo sorriso franco do homem que me serve que o que está no meu prato é algo de bom . De facto comprova-se. Respiro fundo pela primeira vez desde há muitas horas e atrevo converter o vigiar em olhar e admiro com tranquilidade a vida animada da antiga capital do império Inca. Completo a refeição com o gole final na cerveja e quando rodo para pedir a conta a ausência do empregado revela uma estranha e inquietante pintura dependurada nas traseiras do balcão. À primeira vista trata-se de uma réplica barata da última ceia de Cristo , todavia o mesmo está ausente do retrato ; ao fundo do quadro a paisagem revela uma encosta e o muro de pedras onde agora sei estar enterrada Tanta Carhua. Vinte dólares são depositados no balcão e caminho, mais uma vez profundamente inquieto, contra a corrente da multidão. Ao longe vislumbro as torres de uma catedral e instigo o passo em direcção ao refúgio da fé em que fui educado. A enorme nave central está envolta na fria sombra da arquitectura espanhola , dezenas de filas de bancos encontram-se vazias. A chama trémula garante-me que esta é uma casa de Deus vivo. Deixo-me cair sobre o banco mais próximo, tremo lenta mas persistentemente ; as minhas costas tornaram-se uma cola gélida que se esmaga contra o linho da camisa. Dou por mim a rezar uma oração que nunca aprendi muito bem mas não chego a entoar cinco linhas. Uma nuvem negra encobre o vitral que é a fonte primária de luminária e , lá do fundo , do altar ; de onde supostamente repousaria a força de Nosso Senhor vejo-a chegar . A criança nua caminha , braços pêndulos sem vigor que acompanham o corpo magro e o passo firme . Os longos cabelos negros são timidamente alumiados pelas órbitas cintilantes onde, sobre o fundo negro e ausente de espÃrito , brilham duas pequenas luas cheias . Ao passar por mim estanca a caminhada e roda o pescoço a ângulo impossÃvel para coisa viva. Profere: - Hasta Luego – arranca numa corrida desenfreada em quatro patas em direcção ao exterior. Sobre a pedra secular a fuga da bestial criatura não produz qualquer ruÃdo. O silêncio é quebrado pelo meu grito insano por Jesus.
( Continua)
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