marcopintoc
|
|
« em: Julho 22, 2008, 16:34:09 » |
|
Como um véu que cobre a face do cadáver o silêncio cai sobre a praça. Não é calar de arte, é boca fechada de morte, de duelo, de batalha. O Matador dirige-se ao presidente; humilde, de chapéu na mão dedica a lide, viro a cabeça e creio que a dirige à imensa mulher do vestido branco. Ao seu lado, imagino aqueles olhos de raiva a trespassar o toureiro. Ela leva a mão ao belo busto e emociona-se. O sangue do touro representará o homem que jamais entrará em si. Os holofotes fazem a espada cintilar, oculta na muleta traz prenúncios de fim. Olho para o lado, o meu amigo Manuel voltou a rezar, os olhos acompanham cada milÃmetro do movimento, a oração soa mais alta; nos seus lábios leio “Santa Madre de Diosâ€. Arrepio-me da cabeça aos pés . À minha esquerda os meus outros dois companheiros continuam a dedilhar os e-mails e as mensagens urgentes. Quero que se fodam, odeio-os ; nunca mais virei com eles aos touros. Com Manuel sim , ele tem a paixão na alma. Os outros , vagos seres de uma modernidade aborrecedora, limitárei-los a momentos menos dramáticos. Não são dignos da “Fiestaâ€. Na arena uma pequena nuvem de areia é erguida pelo casco da pata posterior direita. A primeira investida é arremetida pela dignidade de um animal estafado, espicaçado, a esvair-se em suco da vida. Como uma neblina que segue o acordar da cidade o pano vermelho segue o caminho dos chifres e liberta-se num último instante. O tornear do corpo do matador faz a sua vestimenta reluzir, a milÃmetros de sua pele o golpe vigoroso, um som ultra-sónico que só os aficionados escutam valida a beleza do movimento. Ele carrega de novo; Bos taurus ibericus, viveu três anos livre na lezÃria, agora luta até à última gota de sangue; sabe que não sairá vivo do cÃrculo rodeado de madeira. O “trincherazo†da muleta é perfeitamente executado. Há respeito no movimento. Das vinte cinco mil bocas sai um “OOOHHHH†de aprovação à bravura . Da besta , do homem. Uma mão apenas segura o pano; um passe de peito , os pés do toureio rodam acompanhando a investida. Sinto o suor escorrer-me em grossas gotas pelas costas. Uma mão apenas, também, limpa a testa. Com o passar da faena o meu conflito interno aguça-se . Direitos ou tradição? Um dia, no escritório, uns colegas politicamente correctos alertaram-me: - Vais ao mais próximo que existe do circo romano - Retorqui: - Que os gladiadores sejam bravos pois meu polegar apontará sempre para o solo. Acendo mais um cigarro. Esmago o maço e realizo que fumei vinte cigarros desde que entrei. Isto não é bom para a saúde: « Que se joda» Ignoro a promessa de um cancro de pulmão perante o molinete, ouso umas palmas mas o olhar rápido e censurador de Manuel relembra-me que presencio o terceiro tércio. O da morte. O frenesim é entoado em silêncio por todos os que assistem. Derreado, o touro estanca na arena. A espada é empunhada. Apontada ao coração, pois assim matam os grandes vencedores de Las Ventas. Chegou o momento. Não consigo deixar de pensar que o calar esmagador é idêntico ao da guilhotina antes do pescoço de Maria Antonieta, uma execução de fascistas numa viela escura de Madrid em mil novecentos e trinta e sete, o sapateado patético de Saddam após o vazio esticar a corda. Pausa. Milésimos de segundo de pausa permitem o respirar da turba. Frente a frente, o ferro e o corno. Engulo em seco e tenho a nÃtida sensação que degluto em perfeita sincronia com todos aqueles sentados na bancada. Precipitam-se ambos, rota de colisão. A lâmina dirige-se ao alvo. Todavia... Um pé escorrega na areia, uma mão que vacila. Quando a espada entra no sanguinolento cachaço as sortes não correm como reina a tradição. Um corno, afiado como uma adaga, trespassa o corpo embrulhado em lantejoulas reluzentes. De onde me sento avisto tudo. Sem saber porquê recordo dois amigos romanos que, desonrados, se precipitam sobre as adagas empunhadas. Escuto nitidamente as carnes perfuradas, o homem, o animal. Toda a praça se levanta. Os peões de brega correm em passo de urgência. Perplexo, esmagado, descortino o movimento do braço do Matador repelindo-os. Ambos tombam. A caminho da morte, A espada e o chavelho tragam uma vida. Não sustenho as lágrimas. No centro da arena, breves segundos antes de expiar o último fôlego distingo claramente a mão do Matador a afagar o focinho do touro. Ambos partem. Há uma paixão a flutuar sobre Las Ventas que carrega as almas daqueles dois. Em sangue e glória.
FIM
|