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Autor Tópico: Jardim de amendoeiras  (Lida 2434 vezes)
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Fábio Videira Santos
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« em: Fevereiro 28, 2009, 00:42:37 »

Diz o senhor da empresa que a humidade me está a destruir a casa. Chegou hoje de manhã, nove horas ainda não deviam ser pois o Piruças não me chamara pelos gemidos para o levar à rua aliviar as entranhas. Bateu imponente na porta, discurso pronto de quem vem averiguar as condições de uma casa, a carta a avisar chegara uns dias antes: o meu lar tinha de ser averiguado, estava em risco de ruir. De modo que aguardei a visita dos senhores da câmara durante a semana, as primeiras pessoas a avistar há muito tempo. Os meus filhos não têm paciência nem gosto para me virem lançar um olá, por vezes mandam-me um dinheirinho, contudo, raras vezes:
- Como está, minha mãe?
Casaram-se, procriaram, multiplicaram-se, fizeram a vontade de Deus Nosso Senhor, esse mesmo que me guarda um lugar no seu jardim, nas minhas preces peço-lhe que quando me levar as amendoeiras estejam bem grandes, pinceladas de branco a florir na constante primavera do lar celestial, foi somente isso que lhe pedi. Acabo um Pai-Nosso passam dez minutos do fim do telejornal e, antes de dormir, repito, apontando para o céu (ele está em todo o lado, mas como é de noite estará porventura a recolher-se, a descansar):
- Ó Senhor, não te esqueças das amendoeiras.
E de certeza lá estarão à minha espera, não me faria tal desfeita.
O senhor da empresa entrou de sorriso amarelo e começou a averiguar, uns apontamentos num papel branco, um dossiê azul-escuro. Bufou quando olhou para a sombra latente no tecto, mais uns gatafunhos na folha. É a humidade diz ele. Fico espantada, velha como sou e ser a porcaria da água, que tanto me faz falta, que me está a destruir a casa. Palavra de honra que tudo isto me deixa transtornada. Se me mandarem para fora, para onde irei? Voltarei a ter o saquinho quente na cama, aconchegando os pés, o chá do jejum constante? Voltarei a poder ver os retratos do meu homem em novo, onde na guerra contra os pretos serviu e ficou a descansar eternamente, no meio de uma floresta qualquer nos subúrbios de Luanda? Não, daqui eu não saio. Daqui só me tiram para a cova.
- Oiça lá, o que vai acontecer agora?
- O que vai acontecer agora?! Minha senhora, vai ter de abandonar esta espelunca.
O aparelho do ouvido anda sem pilhas, lá tenho de questionar:
- O quê, senhor?
- Vai ter de abandonar a sua casa.
Inclina-se sobre mim para aumentar o som, oxalá não repare nas nódoas imundas no pijama, há muito que não lavo as roupas, e para quê, não saio de casa, não convivo, ando a definhar à espera de ingressar no meu jardim de amendoeiras.
- Eu daqui não saio.
- Não diga tolices, minha senhora.
- Ai não saio não, pode vir aqui quem quiser. Não andei a vaguear pelas veredas da cidade, criando filhos, chorando o meu homem em Ãfrica, para agora ao fim de setenta e cinco anos me despejarem de casa que nem cães, respeito pede-se, quero morrer em minha casa, sou velha mas respeitem-me.
Acabei por expulsar o senhor da empresa com a vassoura de cabo partido pela porta. Depois de deixar o Piruças aliviar-se tranquei tudo o que é abertura em casa, enchi o saco de água quente e voltei para a cama. Roguei que o sono respondesse ao meu apelo e, quando chegou, pouco passava das nove da noite, rezei e repeti:
- Ó Senhor, não te esqueças das amendoeiras.
As pálpebras ficaram pesadas, a visão enevoada. Pouco antes de ceder fixei a humidade da minha casa, lembrei-me dos meus filhos, do meu homem a descansar em Luanda, do Piruças a lamber-me os dedos enquanto a memória se enfraquecia, e tenho a certeza que me cheirava a amendoeiras, tal como aquelas que, por terras do Algarve, viram uma catraia a correr beijando o vento.


originalmente aqui, em Maio de 2008


Fábio Videira Santos
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Goreti Dias
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« Responder #1 em: Fevereiro 28, 2009, 11:53:46 »

Um cheiro a amendoeiras perpetuado no tempo. O drama de alguém que ainda considera uma espelunca como sendo a sua casa. Lugar de recordações e afectos meio perdidos no tempo. O jejum perpetuado. O abandono. Dolorido!
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Goretidias

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damasco
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« Responder #2 em: Março 02, 2009, 16:42:14 »

Óptimo conto. Parabéns. Muito bem escrito e, como se não bastasse, tem o Piruças, esse arquétipo do mundo canídeo.
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Fábio Videira Santos
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« Responder #3 em: Março 12, 2009, 22:37:20 »

O meu sincero agradecimento a todos pelos comentários.


cumprimentos,
fvs
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Dionísio Dinis
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« Responder #4 em: Março 12, 2009, 22:44:47 »

O entrecortado relembrar do passado, os diálogos/monólogos, o acre e o doce de uma vida, escritos aqui com muita maestria.Salve!
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Pensar amar-te, é ter o acto na palavra e o coração no corpo inteiro.
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vilde
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« Responder #5 em: Março 16, 2009, 13:54:17 »

Gosto de ver as amendoeiras em flor, aliás penso que toda a gente gosta. No entanto, após a queda da ponte em Entre os Rios, se faça sempre um clique desagradável na minha mente,(estes fenómenos psiquicos de transferência) e a ligação a assuntos marcantes nunca me irão largar...
Apesar de tudo, o título chamou-me.
Um problema actual, o isolamento e abandono dos idosos, as suas peripécias e dificuldades em nada acarinhadas por um governo e uma sociedade egoísta e competitiva, onde se põe e dispõe das pessoas, sem qualquer respeito e consideração pelas suas vivências e pelo seu valor.
Gostei do que... e como escreveu.
Um abraço
vilde
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Hoje, o Figas veio aqui, desejar a todos um bem-estar na vida, da melhor maneira vivida.FigasAbraço
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Bom dia. Para todos um FigasAbraço
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Sejam bem vindos às escritas!
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Boa tarde!
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Bom Ano! Obrigada pela companhia!
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Entrei para desejar um novo ano carregado de inflação de coisas boas para todos
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Partilhar é bom! Partilhem leituras, comentários e amizades. Faz bem à alma.
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E, se não for pedir muito, deixem um incentivo aos autores!
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Boas leituras!
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Boa noite!
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Brevemente, novidades por aqui!
Setembro 05, 2022, 13:38:48
Boa tarde
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Obrigado, Administração, por avisar!
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Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

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Boa noite feliz para todos
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Olá! Boas leituras e boas escritas!
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Boa noite a todos.
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Bom domingo para todos.
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Boa semana para todos.
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