A CASA

[M. Nogueira Borges]

                                                     A CASA


   
   Todos, uns mais que outros, estamos ligados às casas onde morámos. As peripécias da existência leva-nos, muitas vezes, a geografias diferentes das que conhecemos na nascença. São as condições do destino, contrariando a vontade ou os desejos de mudança para a concretização( ou não ) de um sonho. As casas são o canto das confidéncias ou o altifalante dos destemperos, a alcofa do amor ou o antro da repulsa, o espelho da harmonia ou da truculência, o retrato da ternura ou do gelo, a redoma das inocências ou o estilhaçar das más criações.
   As casas são pedaços da nossa memória povoada de risos e de choros, de zangas e de perdões, de vida e de luto, de rearlizações inesquecíveis e injustiças traumatizantes, de brincadeiras e de recriminações, de opulência e de escassez, de grandezas e misérias – de tudo, afinal, de que é feita a roda da vida.
   Quantas vezes uma casa é a referência de uma cronologia, o antes ou o depois de uma casualidade, a justificação de uma luta, o renascer de uma afirmação, o hiato de uma dificuldade, a certeza de uma vida inteira. As casas são sempre a moldura de uma época, figurantes imóveis da mobilidade do nosso filme.
   Há dias, vi, na longa avenida onde moro, uma dessas casas, por onde passei, ser demolida como quem esmaga uma inutilidade. Subia-se por uma escada em cotovelo, que dava a um longo corredor, marginado por quartos, até terminar numa pequena cozinha aproveitada numa reentrância de sala de jantar, frente à qual se estendia uma frondosa ramada que, todos os anos, dava alguns almudes de vimho americano, e onde, à sombra dela, as crianças faziam tropelias diante da complacência de uma bondosa avó. Foi ali que escutei, enquanto o sono não vinha, o ruído dos eléctricos nas suas correrias nocturnas, no tempo em que passear à noite ainda era uma liberdade; que, surpresso, ouvi sagas africanas de esplendor e de debandada, contos de honra e de abdicação; que ri com satisfação e me silenciei nas preocupações; afaguei nascidos e chorei por quem abandonava o mundo; que confirmei o ensinamento da minha meninice aldeã: a partilha do pão tanto pode ser por dois como por quatro.
   Quando o mastodonte de tijolos e cimento parar de crescer para o ceu, vou pedir ao novo dono que ponha uma bandeira, lá no alto, com um coração desenhado.
   É A ÚNICA MANEIRA DE EU VOLTAR A OLHAR PARA LÁ.

M.Nogueira Borges

[Goreti Dias]

Mas também há casas que melhor fossem logo destruídas para não precisarmos de as olhar de novo.

[marcopintoc]

Excelente uso da Língua Portuguesa. Texto rico que atiça a memória do leitor. Na verdade há casas que deviam ficar para a eternidade e outras esmagadas até ao mais ínfimo grão de poeira. Apreciei muito a leitura desta peça.
Abraço
Marco

[gdec2001]

Sim. As casas são elas mas são principalmente nós que nelas rimos que nelas choramos, que nelas sonhamos que nelas amamos . Mas também que nelas odiamos e até que nelas desprezamos . Por isso a casa é vida.
E melhor ?
Só lendo-o amigo Nogueira Borges .
seu
Geraldes de Carvalho

[M. Nogueira Borges]

EU AGRADEÇO(MUITO !) TODAS AS PALAVRAS. PELA ALEGRIA QUE ME DÃO, PELA SATISFAÇÃO DE QUEM ME LÊ...
ATÉ OS LAPSOS DE ESCRITA ; PRESSA DE QUEM, ATÉ, SE " PAVONEIA " QUE NÃO A TEM .....

[CAMPISTA CABRAL]

Fco com o amigo Geraldes, as casas são vida! Memória de tantas coisas e tantos sentimentos e histórias que se desenrolam. Morei em pelo menos dez cidades em três estados do Brasil. Em cada casa uma lembrança. Em cada casa risos e choros. Ainda hoje, quando retorno a uma dessas cidades da minha infância e adolescência, faço questão de passar perto delas, atravessar a rua e imaginar o tempo que passou, mas está impregnado de saudade nas janelas e nas portas e na varanda...

O teu texto me fez lembrar de todas estas coisas! Muito bom!

Um grande abraço!

[Filinto Pinto]

Bom de ler.

[M. Nogueira Borges]

Um abraço a todos.