Djabal
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« em: Agosto 26, 2008, 10:31:44 » |
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Velhos e desiludidos, os meus pais. A mãe ainda acredita que pode parar o tempo. Não toma os remédios, embora consulte um médico sempre que uma novidade chegue ao mercado. Faz as listas de compras como se fosse partir para uma viagem. Meu pai contempla tudo como se estivesse à margem de um rio. Câncer na próstata. Está melhor que ela. Tenho uma filha linda, estudiosa. Ginasta nas horas livres. Por ser minha amiga segue todos os meus conselhos. Agora, ao escrever, percebo o quanto ela se parece comigo. Sinto-me responsável por não lhe ter oferecido muitas alternativas. Trabalho muito e ganho cada vez menos fazendo sempre o mesmo. Descasei-me após um longo suplÃcio. Namoro virtualmente. Simples, prático, limpo, eficiente, sem possibilidades de mágoas fÃsicas. As emocionais quando surgem fazem o computador desligar “automaticamenteâ€. Meu namorado é um conhecido da minha juventude. Foi o meu primeiro. Liguei por estar só. Folheando a minha memória encontrei seu nome no catálogo. Liguei. Fui bem atendida. Conversamos e logo de cara ele me perguntou se ainda gostava de ler. “Claro. E você não perdeu esse hábito?†“Não, ainda não. E você o que está lendo?†“Leio Allan Kardec. Todo dia uma página.†“Eu também.†Tenho aproximadamente mil e seiscentas mensagens trocadas. Tudo o que encontro no dia-a-dia, compartilho. No começo, as respostas eram muito longas, textos que eu lia várias vezes. Para compreender, para alcançar as sutilezas. Hoje ele responde cada vez menos. O mÃnimo. Deveria extrair preciosidades de cada pedregulho que recebo. Não vejo nem uma coisa, nem outra. Vejo algo vazio. Mas estou bem. Nenhum interesse de conhecer quem quer que seja. Nada de trocas, nada de convivência. É tão gostoso viver com a minha filha. Nós nos entendemos muito bem. Fazemos nossos programas, rimos muito. Brigamos outro tanto, choramos juntas. Tenho um canário (herança do ex), um cão chihuahua chamado Guy e a Brigite, uma gatinha vira-latas - cria de uma siamesa e um gato galbo. De todas as relações afetivas que conheci, a melhor de todas é a que tem a Brigite e o Guy. Comando o casal e converso com o canário, brinco com a filha. Gradualmente a troca de palavras escritas se tornou troca de palavras faladas. Conversamos ao telefone. Como a imagem dele é aquela antiga, ele não envelheceu. É moço, bonito, fala o que eu gosto de ouvir. Está sempre pronto para um conselho, e dos bons. Uma espécie de adivinho que, em vez de ler a borra do café ou as próprias vÃsceras, lê meus pensamentos. E conclui exatamente aquilo que quero ouvir. Existem momentos em que nos confundimos ao telefone, a voz dele entra em mim, penetra meus ouvidos e passeia lá pelo meio do meu miolo, relembrando coisas e loucuras da juventude, e parece que me transformo nele, e ele em mim. Nós nos embriagamos e nos amamos assim, a quilômetros de distância. Tudo com muita assepsia, fusão e furor. Um sexo alegre, novo, sádico, sadio e sem ameaças. Devo confessar que só assim consegui me libertar da vergonha na qual eu fui criada. Consegui extravasar e gozar em conjunto. Coisa que anos do casamento não conseguiram fazer. Anos de namoro real, tampouco. Consegui conversar sobre tudo. Não existe nenhum tabu, nenhuma chance de tocar em algo proibido. Assunto? Todo e qualquer assunto. Existe nele uma facilidade impressionante para discorrer sobre qualquer um deles. Não existe prática desconhecida, proibida, escondida. Consegui, finalmente, compreender o que ele sempre diz. Que não existe diferença entre a vida real e a vida sonhada. Sonho quase todos os dias com ele e faço amor. Não há nenhuma diferença. No telefone é uma voz que tem presença. Presença carnal. Ele consegue usar um tom de voz que desperta – exato e instantâneo - um mecanismo do desejo, algo penetrante, aciona todo o meu corpo. E o coloca em predisposto para o amor. Uma, duas, três vezes ao dia. Basta ligar. Talvez isso tudo seja uma forma de desequilÃbrio. (Esse pensamento me assalta durante as horas de folga, ou intervalos do trabalho.) Esqueci de dizer. Trabalho ao telefone. Faço vendas por meio do telefone para clientes selecionados. Não sou aquela pessoa que repete o mesmo discurso milhares de vezes a um cliente desconhecido. Não, apenas telefono para clientes indicados. A minha conversa não é ensaiada. É real. Ele deu alguns palpites na minha vida profissional. Alertou-me para uma série de fatos que, apesar de compreender não consegui seguir. Creio que ele ficou triste, sumiu por uns tempos. Dizendo que precisava viajar. Fiquei triste. Uma terrÃvel sensação de abandono terrÃvel, como eu nunca sentira antes. Incomparável. Para ajudar o meu trabalho aumentou, a renda caiu (como o desgraçado havia previsto) e fiquei sem dinheiro. Não faltava mais nada. Fiz aniversário sem ele. ComemorarÃamos um ano de namoro. As duas datas coincidiriam. Nada. Só. Novamente. Bem que ele me avisou. Disse exatamente quando voltaria. Precisava estar só. Sem ninguém. Não queria conversar. Pensei, é a mesma conversa de sempre. Relembrei momentos anteriores. A mesma coisa. Estou farta dessa falta. Falta do quê? Senti uma rejeição muito grande. Será isso mesmo? Afinal de contas tudo foi tão civilizado. Eu não represento nenhum perigo. Por que uma mentira? Ele voltou. Agora conversa menos. Bem menos. Menos próximo. Mas com a mesma segurança, carinho e voz de antigamente. Consegui seguir seus conselhos. Troquei de empresa, troquei de ramo, troquei minha vida profissional. Ele estava certo. Estou começando tudo de novo. Parece ser a minha sina. Agora estou pronta para recomeçar. Estou pronta para uma vida a dois. Quero muito mais de uma relação. Preciso dele fisicamente. Estamos conversando a respeito.
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