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Autor Tópico: Gabriela, escutas-me?  (Lida 2641 vezes)
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Mel de Carvalho
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"abraça o conteúdo e não a forma" Saint-Exupery


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« em: Julho 27, 2008, 10:41:42 »

Gabriela,

Abre a varanda ao luar, Gabriela, está lua cheia lá fora como tu tanto gostas: bojuda, avermelhada, alaranjada, tal e qual tantas e tantas vezes, a cantaste… como dizias que a vias, que a sentias, enorme, a sobressaltar-se em ti…

Vem dai, meu amor, que a noite não espera por quem não ousa avançar…

Ouves-me minha querida? Escutas-me? Gabriela, hoje - não ontem, nem amanhã -, hoje, estou aqui e tenho para te oferecer a noite inteira e uma flor que ainda está por nascer. Vem dai Gabriela, anda entrançar os dedos nos meus, ouvir o ruído dos nossos passos colados na beira-rio, o coachar das rãs nos caniços, o marulhar das ondas no Bugio … fundir a seiva das nossas bocas uma última vez… uma última vez… Uma primeira vez de um tempo novo, sei lá… Mas vem, Gabriela, por favor, não me deixes nesta ausência.
…. Gabriela… Gabriela…

***

Passaram já tantos meses, tantos e tão intermináveis dias, que, em certos instantes, me parece que já não recordo da forma exacta do teu corpo, do teu cheiro – cheiravas a amêndoas doces e a tangerinas, do que me lembro … -, a textura dulcíssima da pele da tua boca. E o teu olhar, Gabriela? Era duma ternura sem fim…

Existem momentos em que nem consigo asseverar se alguma vez te tive, se exististe em minha vida ou se a vida existiu em ti, em mim…

As paredes descem agora sobre as minhas pernas, meu amor, esmagam-mas, amputam-mas. Trucidam-me as vontades secretas de dar um passo que seja… Como um íman, as paredes são o que me resta agora … As paredes, Gabriela, são uma espécie de sentinelas do que fomos, do que me recordo de termos sido, antes. Amantes… aqui!

Amei-te tanto, minha querida. Acho que nunca fui capaz de to dizer. Era como se a minha boca nunca encontrasse o jeito certo de pronunciar a palavra certa. Como se, autómato me tivesse bloqueado a determinadas palavras… Como se, por as verbalizar, as desvirtuasse, as banalizasse … Que estranha é a mente humana, Gabriela. Como nos retemos em ninharias e não somos capazes de ser quem somos. Na simplicidade de dizer “amorâ€, que seja. De pronunciar sem medo a força dum sentimento…
E, como agora gostaria de tas ter dito, minha querida. De, dizendo, ter visto o brilho de teu olhar…

Antes…

Depois vieram os teus desmaios, as tuas permanentes tonturas, os enjoos. Depois os médicos, os intermináveis, infindáveis exames médicos, depois o veredicto final. Como uma bomba em nossas vidas. Tudo o que parecia forte e robusto se desmoronou. Pedra sob pedra. Como um castelo de cartas içado aos contrafortes do vento… e, o pior, Gabriela, o pior (se existe porventura pior coisa que não te poder neste instante segredar ao ouvido, “amo-te†…) foi o facto de, quando partiste, não ter podido lá estar sequer. Não estava a teu lado... Não te pude abraçar, afagar os cabelos em meu colo, como tanto gostavas nas nossas manhãs secretas… Mimar-te … “Mimo-te, Gabriela"…
Não havia espaço para mim… nunca existi em tua vida, meu amor, em boa verdade. Como tu, teoricamente, não exististe na minha. Teoricamente …

Não mais era que nº vagamente incógnito que surgia no visor do teu telemóvel, quando o não “abafavas†como te recomendava a brincar: - Gabriela, abafa o telemóvel … para que te possa contactar…

Não mais era que uma mensagem constante no teu Outlook e, acredito, um sentimento profundo a latejar-te permanentemente nas têmporas e, quem sabe, a mitigar-te as forças. Ou o que delas te restava …

Um sentimento que ocultaste de todos, o tempo todo. Será pecado amar, Gabriela? Não procurámos, não premeditámos … e, em rigor, não evitámos. E tudo faria de novo, Gabriela se me fosse dada a ventura de o poder fazer. Com a única diferença de que jamais deixaria de te dizer milhões de vezes o que me fazias ser. O ser especial em que me tornava quando te sentia a pulsar enroscada no meu corpo… ou, simplesmente, quando o teu nº vagamente incógnito surgia no visor do meu telemóvel … E me fazia sentir adolescente, louco e desabrido, nos meus mais de sessenta anos … Adolescente! Hoje sinto que sou um velho de cem anos ... mil anos, que importa?

Não Gabriela, também não me despedi de ti quando a terra engoliu o que restava do teu corpo, do corpo em que tantas e tantas vezes fui mais eu, mais gente, mais humano… onde redescobri o sentido de estar vivo, me descobri ávido de pequenas coisas, como um simples afago em minhas mãos, em minha face… ternuras pueris, meu amor, que já havia esquecido, desvalorizado há tantos anos… Sabes, Gabriela, ensinaste-me que o amor não tem idade, nem estado, nem nação, nem lei outra que não seja ele mesmo. E que subsiste a todas as catástrofes até àquela que nos separou …

O que me resta de ti, minha querida, senão uma caixa cheia de mensagens, um milhão de mails que falam deste amor “invisível� O que me resta senão este vazio a abarrotar de ti? Este sentimento de fragilidade em que me sustenho e a dimensão extraordinária da tua capacidade de luta? ... Minha querida … minha querida ...

Foram meses e meses de quimioterapia. Foram meses de combate pela sobrevivência.
Juntos no início, quando ainda acedias a este mundo virtual e, depois, quando já te era insuportável permanecer em pé, distantes: tu a lutares na cama de um hospital e eu enjaulado na condição de “virtual†sem sequer poder saber de ti…

Gabriela escutas-me? Estou aqui, meu amor … A lua está lá fora, Gabriela, vem dai …

**
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Mel de Carvalho
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Goreti Dias
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« Responder #1 em: Julho 27, 2008, 14:03:43 »

Dramático, mas muito mais real do que virtual...
Óptima escrita
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Goretidias

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Mel de Carvalho
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"abraça o conteúdo e não a forma" Saint-Exupery


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« Responder #2 em: Agosto 19, 2008, 20:51:19 »

I
Dramático, mas muito mais real do que virtual...
Óptima escrita
Bjs

Infelizmente, como quase todos os meus contos, tem uma base de verdade. As tais histórias que me vão sendo relatadas por quem confia em mim e, dalguma forma quer perpétuar memórias.

Obrigado, Goreti.
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Djabal
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« Responder #3 em: Agosto 20, 2008, 10:26:15 »

A descrição desse sentimento tão vasto, ignorado e incompreendido em todos os sentidos, tem nesse conto contornos nítidos. Relata sensações e ausências, lembra  da impossibilidade de controle. Muito belo ficou o resultado. Lembrou-me bastante a Teresa da obra de Miguel Esteves Cardoso. Parabéns, menina. E, felicidades.
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« Responder #4 em: Agosto 21, 2008, 12:51:46 »

Doenças terriveis, amores cortados à lâmina do destino.

Abraço
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Mel de Carvalho
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"abraça o conteúdo e não a forma" Saint-Exupery


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« Responder #5 em: Agosto 28, 2008, 21:19:11 »

A todos os amigos, agradeço reconhecida as leituras destes contos.

Gjabal: tempos houve em que não perdia uma crónica de Miguel Esteves Cardoso. Estariamos ai nos anos oitenta e tantos  do século passado. Lia o Expresso regularmente e o MAC era um dos cronistas da época... olhando para trás deu-me uma espécie de nostalgia ... tanto caminho, Djabal.

Brito:
Estas doenças terríveis já me tocaram de muito perto... perto demais. São momentos de luta e crescimento. E, nalguns casos, como o do meu conto, de absoluta perda. O cancro pode ser vencido, quando detectado a tempo. A questão é que, tantas e tantas vezes, nos negamos a ver os sinais mais que evidentes da sua presença.
Do amor: tenho por certo que é o bem maior e o combustível da humanidade. Usando uma frase que li há minutos, de Diogo Infante "que somos nós sem as pessoas que amamos?". Nada, caro Brito. Em rigor, nada.

Aceitem os meus maiores cumprimentos
Mel
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Tim_booth
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Queria escrever à velocidade com que penso.


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« Responder #6 em: Agosto 28, 2008, 23:39:55 »

Mel, mais uma vez os teus contos deixam-me sem palavras, não por estarem carregados delas, e bonitas que são, mas por estarem carregados de uma emoção que, mesmo tentada, não consegues disfarçar. Talvez por isso sejam únicos e brilhantes, por estarem carregados de um sentimento verdadeiro, mesmo que não de quem o escreveu, mas de quem transmitiu.

Belíssimo, tanto quanto triste, conto.

Cheers
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Mel de Carvalho
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« Responder #7 em: Agosto 29, 2008, 20:45:18 »

Tim, sou-lhe imensamente grata pelas suas palavras.
Tem razão, é um conto triste ... como o são, as perdas humanas, de um modo global, para os que amam (neste caso, num amor correspondido e clandestino).

Fraterno abraço,
Mel
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E, se não for pedir muito, deixem um incentivo aos autores!
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Boas leituras!
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Boa noite!
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Brevemente, novidades por aqui!
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Boa tarde
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Obrigado, Administração, por avisar!
Setembro 14, 2021, 10:50:24
Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

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Boa noite feliz para todos
Maio 07, 2021, 15:30:47
Olá! Boas leituras e boas escritas!
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Boa noite a todos.
Abril 04, 2021, 17:43:19
Bom domingo para todos.
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Boa semana para todos.
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Boa tarde a todos.
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Boia noite para todos.
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