Em Rapid Dream Falls

Dizem que o que aconteceu naquela tarde de Março em Rapid Dream Falls foi absoluta culpa da crise que se abateu pelo mundo. Senão vejamos. O avião era pilotado pelo retornado Joe Moe Stewart que tinha sido despedido de comandante da Continental e tivera necessidade de regressar à pequena cidade do Dakota do Norte para uma humilhante guarita dos seus catatónicos progenitores que, vítimas de uma viagem ácida que durara desde Woodstock , se limitavam a contemplar o vazio embalados no chá verde e na música redentora da cítara de Ravi Shankar. Era grande o desespero de Joe Moe para a que tal se tivesse sujeito. Escolhera o álcool e a perdição dos bordéis para tentar discernir o motivo que decerto existiria entre a névoa do colapso da sua vida. Abandonou rapidamente as roupas caras que haviam sobrado e trocou o penhorado SUV por um Cadillac mal amanhado onde no rádio estava encravada uma velha cassete que repetia incansavelmente “Born to Run “ de Bruce Springsteen. Uma noite , cheio da água da lua , escavacou ao soco o aparelho para calar a voz que lhe dizia que a aquela cidade lhe arrancava os ossos dos costados. Joe Moe terminava as noites a uivar na periferia. Uivava ao desafio com um coiote longínquo que parecia ser o único ser vivo que respondia à sua angústia.

O que aconteceu em Rapid Dream Falls não foi culpa do Joe Moe e do facto de o único trabalho que conseguiu arranjar ser o de piloto de avião agrícola. Consistia a sua missão em manobrar um velho Pawnee 235 e passar rasante aos campos agrícolas onde o trigo e a giberela lutavam uma guerra sem quartel. Deveria então, quando o altímetro indicasse os trinta e cinco pés , largar a sua carga de Bendazol e voltar ao aeródromo para poder , algumas horas depois , esfumar a paga do dia nas rodadas que duravam até ao choro convulsivo ao balcão do bar que o aturasse até mais tarde.

Talvez tenha sido culpa da crise, que fez com os produtores do Kentucky adulterassem os seus venenos de bourbon acelerando os passos de insanidade de Joe Moe. Talvez o que aconteceu naquela tarde de Março em Rapid Dream Falls , Dakota do Norte , tivesse sido escrito pela mão do fantasma de Jerry Garcia quando , completamente ébrio e tresloucado , o antigo brioso piloto de voos intercontinentais confundiu o bidão do pesticida com os abundantes restos da produção de LSD dos seus pais . A colheita de setenta e oito havia sido particularmente feliz , fora preparada com intensa devoção na celebração da passagem pela cidade dos míticos Grateful Dead e do circo de consumidores de tudo que eternamente os seguia.

Decerto grande teria sido o dano para a economia, primordialmente agrícola, do condado se Joe Moe tivesse liberto a sua alucinogénia carga sobre os campos. Porém tal não sucedeu. A culpa foi da crise e do desespero da Wal-Mart que lançava promoções ao mesmo frenético ritmo com que reduzia quadros. A especial da semana na secção da bezana era uma caixa de seis garrafas por quinze dólares. Pintadas no cartão as palavras “Straight Strong from Kentucky “ . Joe Moe tomara uma delas ao pequeno-almoço. Em pleno voo a zurrapa cegou-lhe a visão e a “manche “ flectiu na direcção do povoado. A curta distancia dos telhados e das antenas parabólicas a avioneta largou a sua chuva.

O dilúvio abateu-se sobre os incautos habitantes de Rapid Dream Falls . Os primeiros a serem atingidos foram os dois líderes locais do clã dos capuzes brancos. A catadupa extinguiu o fogo onde trabalhavam arduamente um churrasco de angariação de fundos para a causa branca. O instinto inicial de irem buscar as armas e abaterem a aeronave ( decerto pilotada por um escuro ) foi substituída pela urgência de não perder o dinheiro investido em costeletas e t-bones . O repasto foi servido. O molho era substancialmente diferente de tudo o que os participantes no convívio alguma vez haviam provado.

A dormitar no seu alpendre o velho Jim Mallory foi aspergido pelas gotículas que se desprendiam do depósito de Joe Moe. Quando abriu os olhos a sua sebe havia crescido desmesuradamente. Entre a vegetação que um vento quente e conhecido abanava veio o cheiro do napalm e do vietcong. Jim urinou as calças e rodou à cabeça à procura do rádio. Precisava de chamar os A6 para limparem o perímetro.

Na ponta final do voo rasante do Pawnee ficava o imaculado jardim de Norma Mae. Como era seu hábito a esposa do reverendo encontrava-se a cuidar da sua colecção de porcelanas de jardim. No momento exacto em que foi atingida pelo líquido vindo do céu desembrulhava a sua última aquisição. Uma estatueta em loiça onde a silhueta esguia de um galgo era reproduzida em escala um por um . Quando conseguiu limpar o rosto do líquido que a cobria e que se introduzira em grande quantidade nas suas narinas e boca, Norma Mae percepcionou com grande espanto que a estatueta apresentava uma exagerada proeminência do membro reprodutor. Sentiu-se assediada na sua condição de esposa americana e correu para o interior , para o telefone , para a linha quente do programa de Oprah que defendia as causas da verdadeira família crente no vermelho , branco e azul e temente a Deus. Todas as operadoras estavam ocupadas e o tempo previsto de atendimento era de nove minutos. Aborrecida marcou o número do programa de Tyra Banks.