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Autor Tópico: O Caminho (20)  (Lida 1462 vezes)
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NunoMiguelLopes
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Não vou gostar nada do dia de hoje, pois não?


« em: Outubro 22, 2009, 11:52:28 »

As peças do terceiro braço de Pace que não podiam ser salvas eram as únicas que ainda estavam sobre a colcha esburacada da cama do quarto de casal onde ele, Bliss e Worms se demoravam, apesar dos gritos de sofrimento atroz da rapariga desconhecida e invisível que eles tinham vindo salvar se multiplicarem com crescente intensidade e frequência. Cada grito parecia o eco de um anterior. Era tão impossível distinguir entre uns e outros quanto adivinhar a sua proveniência, limitada algures ao contexto metadimensional do Motel da Escuridão. O homem alto com o chapéu de abas largas pendurado nas costas pelo cordel ao pescoço permanecia, por ora, completamente alheado dos gemidos longos e lancinantes que, se Bliss tivesse pêlos alguns no corpo, cada um deles estaria agora eriçado. Worms abandonara a cadeira e escolhera um carreiro imaginário na alcatifa cinzento-axadrezada para andar de lá para cá, sempre medindo a sua distância para com o espelho sobre a cómoda. Estava agitado, mas não por causa da sessão interminável de tortura que ecoava por todo o edifício. Aquilo já durava há algum tempo. Começara muito antes da chegada dos dois novos hóspedes ao motel e, não obstante as boas intenções destes, Worms duvidava que a presença deles viesse a alterar o rumo das coisas. Os gritos eram uma constante por ali, Worms estava habituado a ouvi-los a meio da noite e a não ser que estivesse a tentar dormir, aproveitando um momento de acalmia depois de ter alimentado as suas muitas bocas esfomeadas com mais um repasto de aranhas, os gritos raramente o incomodavam. Era antes a conversa de Pace que agora o desconcertava.

Com a mesma placidez de entoação, Pace falava baixinho sobre as suas memórias. As falsas, as novas, e aquelas que ele considerava ainda verdadeiras, embora aos poucos fosse perdendo a sua confiança nelas. Imagens de um mundo que já não existia. Não se recordava ao certo quando tinha acontecido, dizia ele. Um acontecimento assim devia ser inesquecível. Pace devia saber onde estava e o que estava a fazer no exacto momento em que o mundo mudou, mas não. Admitiu que todas as memórias que restavam agora na sua mente sobre aqueles últimos dias eram sombras muito esbatidas. Bliss compreendia o que ele queria dizer, porque era isso que via quando tentava espicaçar as memórias dela. Pace, provavelmente, estaria na oficina do pai, a vê-lo trabalhar, ou escondido junto pilares restaurados do motor a vapor Newcomen a ler alguma coisa de James Blaylock ou Marvyn Peake quando o sol, completamente inusitado, baixou a meio duma manhã e os primeiros rostos torturados começaram a aprecer nas nuvens cor de chumbo que, naqueles primeiros dias, ainda flutuavam altas num céu crepuscular. Mas isto era Pace a unir os pontos, e ele disse-o. Quando a noite chegou a meio de uma manhã qualquer, não sabia dizer há quanto tempo, nem se fora assim que acontecera, lembrava-se de estar a ver os motins nas notícias e dos semblantes fechados dos pais, mas não se recordava de quantos anos tinha ou das datas. Apenas que os rostos que surgiam no aparelho de televisão, que o pai havia modificado de forma a ostentar a fisionomia antiquada steampunk que prosperava por toda a casa, se apresentavam tão fechados quantos os dos pais. A ciência não podia explicar o que estava a acontecer. Para onde tinham ido os dias que, de muito curtos rapidamente tinham desaparecido de todo, conforme o céu carregado e assombrado descia sobre a cabeça duma Humanidade estarrecida.

A mãe de Pace, segundo este julgava saber, era militar de carreira. Isso, ou agente da autoridade. Era um duelo ao meio-dia que nunca passava dum impasse coalhado entre as duas hipóteses nas memórias obscuras de Pace. Em todo o caso, lembrava-se com maior claridade da colecção de armas que a mãe tinha em casa. O pai, que era um pacifista, tolerava a presença do que ele chamava máquinas inúteis de morte desde que pudesse dar-lhes o mesmo toque retro que aplicara ao televisor, aos telefones, aos relógios e a todo o tipo de tecnologia século XXI que por acaso encontrasse o seu caminho para dentro da residência século XVIII dos Pace. O colt type 5 que Pace ainda carregava consigo, com o punho em madeira trabalhada, agora danificado involuntariamente pelo toque corrosivo de Bliss, era uma das armas da colecção da mãe que o pai tinha modificado, modelando-o ao estilo do “The Phantom Empireâ€, uma série de filmes da década de trinta onde cowboys do velho oeste combatiam robots numa civilização subterrânea.

Pace lembrava-se de se ter despedido da mãe que tinha sido chamada ao serviço quando a situação no país rodara irremediavelmente para fora de controlo. O caos substituíra a ordem na sociedade. Era o fim do mundo e os governos precisavam de todos os seus soldados / agentes da autoridade num derradeiro esforço para restaurar o anterior status quo. A confiar nas suas lembranças, o que fazia sempre por sua conta e risco, aquele momento de despedida foi a última vez que Pace viu a mãe. Não se lembrava do rosto dela. Nem do nome. O mesmo acontecia com o pai, embora deste ele ainda conseguisse reter a imagem de um homem magro de cabelos brancos soltos no alto da cabeça, óculos de soldador eternamente na testa, olhos encovados, nariz afilado sob o qual os pêlos que pareciam crescer horizontais do bigode competiam em alvura com os da pêra que lhe despontava longos do queixo.

Neste ponto do relato, Pace parou de falar e levou a mão à boca, de modo pensativo e surpreendido.

- Acho que nunca o tinha recordado com tanto pormenor antes – disse ele.

Bliss e Worms acenaram afirmativamente, reconhecendo da sua experiência pessoal a bizarra sensação de epifania das memórias que Pace acabava de apreciar. Se qualquer um deles puxasse pela cabeça e as vocalizsse, as memórias como que se concretizavam à sua frente embrulhadas em palavras que saíam da boca independentes de qualquer raciocínio. Mas não duravam muito, estas lembranças, e não garantiam que da próxima vez que se evocassem a não tomassem uma roupagem diferente e completamente anacrónica. Isto acontecia em especial com as mais distantes.

Mas Pace não se deteve muito tempo, pensativo. Retomou a narração quase sem que Worms ou Bliss, ambos perdidos nos seus próprios pensamentos, o notassem, arriscando-se a perderem o que ele disse a seguir.

- Quando as coisas horríveis que víamos no céu começaram a descer das nuvens e a caminhar entre nós, percebemos que o fim era inevitável.
« Última modificação: Dezembro 16, 2009, 13:32:11 por NunoMiguelLopes » Registado
Goreti Dias
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« Responder #1 em: Outubro 26, 2009, 11:22:10 »

Uma explicação à vista?! Ena!
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Goretidias

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Hoje, o Figas veio aqui, desejar a todos um bem-estar na vida, da melhor maneira vivida.FigasAbraço
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Bom dia. Para todos um FigasAbraço
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Sejam bem vindos às escritas!
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Boa tarde!
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Bom Ano! Obrigada pela companhia!
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Entrei para desejar um novo ano carregado de inflação de coisas boas para todos
Novembro 10, 2022, 20:31:07
Partilhar é bom! Partilhem leituras, comentários e amizades. Faz bem à alma.
Novembro 10, 2022, 20:30:23
E, se não for pedir muito, deixem um incentivo aos autores!
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Boas leituras!
Novembro 10, 2022, 20:29:08
Boa noite!
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Brevemente, novidades por aqui!
Setembro 05, 2022, 13:38:48
Boa tarde
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Obrigado, Administração, por avisar!
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Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

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Boa noite feliz para todos
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Olá! Boas leituras e boas escritas!
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Boa noite a todos.
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