Guacira
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« em: Outubro 30, 2008, 22:35:54 » |
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Carlos era um homem alegre, sensÃvel, irreverente e até cuca fresca demais, na opinião de sua esposa. Tinha profundo elo com a vida e profunda ligação com a arte: tocava piano, assobiava e dançava muitÃssimo bem, porém sua segunda grande paixão era o cinema. A primeira era sua mulher. Foi filho único de um pai muito rico e bastante permissivo também, coisa que o filho soube aproveitar enormemente. Apesar de todos os esforços feitos nesse sentido, não estudou além do preparatório para ingressar no curso de medicina, por absoluta vontade do pai, porque ele era mesmo, um bon vivant. O pai, com muita determinação e nenhum dinheiro, começou sua vida como vendedor ambulante. Sendo muito sagaz, econômico e ambicioso, conseguiu juntar uma fortuna considerável como dono de garimpo, situação que lhe dava respaldo para ir diversificando suas aplicações em imóveis e armazéns de venda em grosso. Um de seus grandes aliados era o rio, que nas cheias deixava a região isolada do resto do estado, não entrando nem saindo transporte de carga de nenhuma espécie. A essa altura elas eram mais ou menos previsÃveis e os armazéns do Coronel Herculano ficavam abarrotados de mercadorias de primeira necessidade, incluindo o azeite usado na iluminação, e quando ninguém mais tinha o que vender, seus produtos eram disputados a peso de ouro, como num mortal leilão, apesar dos protestos gerais. Nada, porém, podia ser feito; nenhuma alternativa de sobrevivência lhes era possÃvel até porque, à quela época, naquela região, os ricos faziam a lei. O dinheiro desse homem comprou, explorou e facilitou uma gama de atitudes pouco ortodoxas; só não creio que se tenha envolvido com crime de morte, embora fosse bastante comum a ação de jagunços por ali, financiada pelos ricos. Daà a se tornar exportador de diamantes, foi como fogo ladeira acima; sistematicamente foi ampliando seu universo financeiro com essa única intenção: ficar rico. Para iniciar o negócio do garimpo, começou comprando animais de carga para fazer o transporte das tralhas dos garimpeiros que trabalhavam como escravos para os proprietários, até os locais de extração que eram de difÃcil acesso. Todo o dinheiro ganho era metódica e integralmente aplicado, porque o grande sonho era ser o dono do garimpo. A constituição de uma famÃlia foi adiada em função de sua determinação quanto a seu objetivo maior. Nada sei sobre seu primeiro casamento, além do fato de não ter tido filhos. Carlos nasceu de uma segunda união com uma mestiça de Ãndio com português, após algumas tentativas abortadas e promessa a tudo quanto foi santo, sendo o sonho especialmente recomendado a São José, a quem o pai prometera rezar o OfÃcio pelo resto de suas vidas. Cresceu aquele rebento rodeado de vontades e de primos puxando-lhe o saco. Apenas um deles lhe dedicava amizade sincera, tendo sido sempre seu amigo, companheiro fiel e protetor nas grandes farras da mocidade, nas quais costumava detonar bastante dinheiro sob o olhar complacente do pai. O filho, a quem costumava chamar “cruz do meu rosárioâ€, realizou alguns de seus sonhos, a exemplo de ter sido Imperador do Divino, ponto de honra das famÃlias ricas da região, menos o de se formar e ser um “dotôâ€, ainda que para isso tenha envidado esforços sobre-humanos, principalmente o de mandá-lo estudar na Bahia (à época, assim se costumava chamar Salvador, a capital do estado da Bahia). Todas as facilidades foram efetivadas e todas as vontades satisfeitas para que ele estudasse. À época eram duas as alternativas para que os filhos das famÃlias de posses se instalassem na capital com essa finalidade: colégio interno ou hospedagem em repúblicas de estudantes, e Carlos, é óbvio, optou pela segunda alternativa. Foi o paraÃso; ali encontrou todas as facilidades para ampliar sua vida de rico herdeiro com uma leveza extraordinária; no próprio entorno da república, localizada na Rua Carlos Gomes, centro da cidade, onde morava boa parte da elite da sociedade baiana, existiam bordéis de luxo e os famosos “castelosâ€, onde varava as madrugadas dançando e perdendo o dinheiro que o pai lhe facilitava ao dar crédito ilimitado numa das joalherias elegantes da cidade, talvez pela escassez de bancos. No mais famoso desses “castelosâ€, o Tabaris, que contratava dançarinas de luxo importadas da Europa, e boas orquestras, era o nosso Fred Astaire, conhecido como pé de valsa e pródigo “pagadorâ€. Outro conforto facilitado pelo pai era possuir automóvel próprio, importado à época, porque ainda não tÃnhamos indústria automobilÃstica; o dele era uma baratinha vermelha, conversÃvel, que fazia a diferença! Diante de todos esses objetos de sedução, como ter tempo para coisas prosaicas e desprovidas de aventura, como estudar? Pouco ia nosso notÃvago ao colégio e quando ao final do ano o pai vinha do interior com os dedos poluÃdos de anéis com enormes brilhantes, saber o resultado daquele perÃodo escolar, cheio de esperanças, recebia, invariavelmente, a notÃcia de que seu filho tinha levado bomba, até porque pouco tinha freqüentado as aulas. Ele mesmo contava que houve certa vez em que seu pai, cansado de ter notÃcias desagradáveis diante dos resultados de outros rapazes, perguntou ao diretor: - mas meu filho não recebe nem uma medalha de sabão?
O semblante do diretor deu-lhe muda resposta. Mas tudo se repetia a cada ano letivo que se iniciava, depois de muitas promessas de mudança de vida...até que um dia o velho pai cansou de sonhar em ter seu filho “dotôâ€, e resolveu comunicar-lhe que não voltaria a estudar na Bahia no próximo ano, para destruir o patrimônio que ele construÃra com tanta determinação e trabalho. Queria vida de esbórnia? Pois a teria trabalhando duro no seu garimpo para receber a lição que merecia, sem nenhuma regalia de filho do dono. E ai, sim, “poderia jogar todo o dinheiro que ganhasse na lata do lixoâ€. Aquela decisão foi dura para o velho; chorou de pesar ao desistir daquele sonho. O jovem Carlos era forte como um touro mestiço; um espécime de estatura acima da média, fortes músculos que exercitava lutando boxe, belos olhos azuis que sobressaiam sobre a pele morena como a da mãe e mais dourada ainda quando voltava à Chapada; os cabelos eram lisos, não apenas por causa dessa ascendência indÃgena, vez que o pai era descendente de holandeses. Pois, muito estimulado pela possibilidade de trabalhar na lavra e conviver com o dia a dia dos garimpeiros, uma novidade excitante e romantizada em sua cabeça, foi ele para essa rotina desumanizadora. Daquela luta, só conhecia o brilho dos diamantes já lapidados, que lhe garantiam toda sorte de luxos.
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